Ossos do ofício
por migalhas, em 20.09.04
Quem quer que seja que exerça uma actividade, seja ela qual for, tem de se sujeitar aos mais variados condicionalismos que a mesma implica. Não é novidade nenhuma que assim é. Por exemplo, aquele que é músico tem de se sujeitar a tocar em pleno Verão à torreira de um sol escaldante ou por vezes, no Inverno, debaixo de um temporal e de um frio tais, que nem permitem que a voz aqueça. E depois tanto está hoje no norte do país, como amanhã tem de estar no sul para mais um espectáculo. O palhaço, por exemplo, uma das profissões mais difíceis de que eu me possa lembrar, tem de estar todos os dias bem disposto, alegre e a fazer as maiores patetices para alegrar uma platéia sempre sequiosa de uma boa... palhaçada! E sabe-se lá quantas e quantas vezes o pobre profissional, camarada, amigo, palhaço se encontra com a disposição adequada àquilo que tem de protagonizar durante o seu número. Vejam-se os actores de cinema e de teatro. Representam tantos e tão diversificados personagens, que às tantas já nem eles sabem, ou sequer se lembram, como são na realidade, sem vestirem a pele de um dos papéis que continuamente interpretam. Uma outra profissão igualmente indispensável à nossa sociedade consumista, é a do “homem do lixo”, ou se quisermos, responsável pela recolha dos detrítos de todos nós. São toneladas de lixo que hoje em dia se produz em cada cidade e para isso todos nós contribuímos diariamente com uns quantos quilinhos. E quem é que fica encarregue de mexer nos nossos desperdícios, nos nossos detritos e levá-los para onde os mesmos possam ser devidamente reciclados? O “homem do lixo”. Que todos os dias deve pensar que não lhe poderia ter calhado em sorte profissão mais suja. Por estes escassos exemplos, mas que penso são reveladores, se pode constatar que não existe bela sem senão. Ou seja, não existe profissão que tenha os seus contras. Eu que sou publicitário, não podia deixar de dar a minha contribuição para esta exposição. Quem estiver por fora deve achar a profissão aliciante e cheia de desafios. É, disso não tenham dúvidas. Mas se vos disser que muitas são as vezes em que temos de ir contra os nosso princípios e fechar os olhos ao que só nós sabemos de forma a conseguirmos “impingir” um certo e determinado produto a um consumidor que quantas vezes nem precisa dele mas que, graças à nossa insistência, não só vai passar a precisar como poderá inclusive vir a achá-lo imprescindível na sua vida, então ficarão com uma pequena ideia daquilo que também é esta área. Um mundo de sonhos, de ilusões que todos os dias vendemos a quem deles tanto necessita para se afirmar, para ser aceite ou simplesmente para se auto-satisfazer. São os ossos de cada ofício, de cada profissão. Sapos que temos de engolir diariamente e esquecer logo de seguida, para que possamos andar para a frente minimamente de bem connosco. E é para quem quer. Pois quem não quiser precindir da devida limpeza da sua consciência, pode sempre dedicar-se a uma outra actividade qualquer que não apresente destes esquemas complicados de gerir. Mas será que existe tal coisa? Se alguém souber de um ofício isento de ossos, onde apenas possamos usufruir da carninha tenrinha, diga qualquer coisa. Eu vou estar por aqui, aguardando.