O poder da iniciativa
por migalhas, em 09.08.04
Estive este fim-de-semana numa praia do litoral alentejano onde pude assistir a uma iniciativa que teve tanto de interessante, como de didáctica. Mas vou começar pelo princípio. Estava eu na esplanada agradavelmente virada para o mar - a tomar uma refrescante cerveja, quando deparo com um miúdo na casa dos oito, nove anos, que dedicava o seu tempo a recolher todo o lixo com que se cruzava. Numa mão segurava um saco em papel e neste depositava todo o tipo de detritos que, infelizmente, outras pessoas menos dotadas do tão urgente civismo, anteriormente haviam deixado esquecido no areal, nas dunas, no chão. Prontifiquei-me a enaltecer aquela sua atitude, que ganhava ainda mais mérito por provir precisamente de um simples petiz. Tão novinho e já preocupado com as polémicas questões ambientais. Que belo exemplo ele estaria a dar aos mais velhos, pensei. E não sei se movidas pelo embaraço que aquela criança lhes provocou, a verdade é que nem cinco minutos passaram quando reparo em duas senhoras que, tal e qual o miúdo, recolhiam do areal todo o tipo de despojos que nele repousavam. E mais. A acompanhar toda a dedicação e empenho que colocavam nesta causa, estavam os mais variados comentários que tinham por alvo os responsáveis pela falta de higiene daquele que é um espaço público por excelência e que, como tal, se quer limpo. A minha alma pasmou! Seria do sol? Estaria este a provocar insolações a torto e a direito numa população que sempre se pautou pela despreocupação neste particular do asseio? Mas nem sol havia, pelo que não poderia ser dali. Propus-me a investigar. Este nosso povinho não costuma dar ponto sem nó, pelo que a iniciativa não deveria ser isenta de um proveito para estes empenhados membros. Guiado pelo alvoroço que se ouvia a alguma distância do local onde me encontrava, desloquei-me às traseiras de um dos bares de praia que por ali proliferam e deparei com a causa de toda aquela actividade. Uma marca de produtos farmacêuticos havia escolhido aquela praia para se anunciar e fazia-o através de uma iniciativa que implicava a colaboração da população ali presente. A mecânica era simples. Em troca de uma pequena amostra do medicamento em causa, a população só tinha de entregar um saco de papel - que lhes era igualmente fornecido pelas assistentes - cheio com todo o lixo que pudessem recolher nas redondezas. Foi então que percebi a razão de toda aquela azáfama. Afinal as pessoas não haviam mudado. Nada disso. O que as movia era aquilo que sempre as faz mover: o receber algo em troca. Nem que seja uma amostra de um mero medicamento. Nessa altura descansei. Afinal tudo estava como sempre esteve. Ninguém havia dedicado uns minutos do seu precioso tempo de praia para se preocupar em mantê-la um pouco mais apresentável. A louvável iniciativa não partira da populaça, mas de uma marca que dava algo de palpável em troca. Claro, pensei. Onde é que eu estava com a cabeça? Ousar pensar que alguém se dedicava assim, por iniciativa própria, a limpar as nossas praias. Que estupidez a minha! E para ganhar o quê? Um ambiente mais agradável, locais mais cuidados, zonas mais atraentes? Nã! Isso ao pé de uma amostra de um determinado produto de nada vale. Sosseguei. Afinal as questões ambientais ainda não preocupam os portugueses a esse ponto. Afinal vamos continuar a afundar-nos na típica falta de civismo ou na despreocupação e falta de respeito pelo espaço que é de todos nós. Afinal Portugal não mudou naquele dia, naquela praia. Realmente, onde é que eu estava com a cabeça?