Quo vadis?
O dia aproxima-se e eu dele abeiro-me com enorme cautela.
Fixo-me no chão que piso e do interior deste invólucro que me separa de tudo o que me é exterior, olho esse mesmo exterior com todo o cuidado. Presto-lhe a máxima atenção que me é permitida, enquanto na minha mente revolta tudo se questiona com uma única certeza, a de que estou vivo. Mas estarei mesmo? Ou é este o estado de morte, que antes essa que a sorte de nada saber. Focado nesse outro lado, para lá desta capa que veste da cabeça aos pés, questiono-me sobre cada parcela com que me brinda. O porquê desta luz, da sua intensidade e quem ou o quê a propicia? Por que sou mais desperto quando ela se instala? Por que chega a cada canto e o expõe como ele é, por mais recôndito e escondido que seja? Por que beneficia desta intensidade que depois distribui e faz chegar a tudo e a todos, proporcionando a tudo e a todos um estado de alerta, de actividade, de acção, que não se encontram na sua ausência? E tanto mais que o dia tem, dessa estranheza que o embeleza mas que o torna medonho também.
E depois instala-se a escuridão. A ausência daquela luz que antes se impôs e passadas umas quantas horas se demite de funções, delegando a parcela seguinte de tempo a este seu oposto, seu diferente como a noite o é do dia. E uma outra vez cá de dentro volto a olhar tudo o que me rodeia e tudo volta a ser questionado, a ser posto em causa, pois que tudo é antagónico desse antes ainda recente.
E a procura de respostas regressa, a incessante busca por razões que sejam sustento deste andar cambaleante de quem nunca sabe como, onde, quando, porquê. Que não é alheamento, desinteresse, antes um cansaço que se apodera de quem não se acomoda com aquilo que nos é imposto e garantido como correcto, quando nada o é, pelo menos a meus olhos. Numa eterna demanda por este Graal de todos os tempos, o querer saber por que corre o vento para diante e com ele o tempo, por que não há regresso desta viagem, por que é este o cenário e não outro, por que é indesmentível a morte e por que se avoluma ela com a idade, por que não gozamos da eternidade e nela satisfazemos os tantos porquês que nos atormentam cada segundo da nossa insignificante, ofegante e vazia existência.
Por que o dia traz por companhia o sol, por que a noite se faz acompanhar da lua, por que me perfiz neste rochedo quando existem incontáveis pairando suspensos por todo este universo de que não conhecemos uma ínfima parcela?
Acordado, vivo em permanente espanto, em continuada surpresa, em constante sobressalto, pois que cada evento se reveste de uma opaca incerteza, de uma estranheza que me consome até ao tutano. Há quem julgue que sabe, garantidamente sabe, afirmando convictamente que é assim por que coisa e tal, assim está provado, por dois mais dois que é um redondo quatro. Mas o que é isso do dois e isso do quatro e isso do mais? E eu deixo-os gozarem dessa sua presunção de quem julga, melhor, assume, que tudo sabe, pois que tudo tem explicação, já definida ou à qual facilmente se chega por via dessa outra coisa, também ela por nós inventada, a que chamámos de lógica.
Que eu prefiro a insegurança de um estado que apenas se supõe ou na nossa cabeça se imagina, à falsa segurança de um outro em que tudo, ou quase tudo, repousa instável numa crença periclitante, ao sabor de uma maré que consoante a intensidade tudo apaga ou deixa a nu, repondo a zeros o que se queria já embalado a cem ou a mil.
E assim me recolho eu, para me deitar dessa incerteza acompanhado. Que só ela me agasalha, me aconchega, me segreda que toda a vida é uma eterna noite, onde tudo o que julgamos saber se encontra guardado no escuro e aí se esconde de nós, ignorantes marionetas que nem sabemos ao que andamos, quem somos, para onde vamos.
E por isso a oração, a apelar a um deus que desconhecemos mas em que cremos que nos irá defender de tudo o que não entendemos.
Cerro as pálpebras e sonho que um dia irei ver o mundo que me cerca com a legendagem de quem não lhe entende o idioma, pois que sempre me fala numa língua que não a minha, que não a de ninguém que nele habita, sabe-se lá porquê, às tantas nem ele sabe, e tudo isto é afinal uma imensa coincidência apenas por que tem ou tinha de ser, vá-se lá saber.
inédito de migalhas (100NEXUS_2011)