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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Por breves momentos

por migalhas, em 12.09.05
E depois alguém me dizia insistentemente que aquele era o meu fim. E empurravam-me e apertavam-me o braço com força e teimavam em olhar-me nos olhos gritando a viva voz que não tentasse sequer contrariar o que me estava destinado. A confusão generalizou-se e depressa eram incontáveis as vozes que ecoavam na minha cabeça, numa amálgama de palavras cruzadas que nada diziam. Cerrei os olhos, na esperança de que tal me permitisse uma fuga desesperada. Uma ausência premeditada. Uns instantes absorto da dura realidade que se me apresentava palpável, suportada por aquele reboliço crescente e agora jamais ausente. Encontrões, gritos, ofensas verbais, numa claustrofobia que me preenchia a cada segundo e que se avolumava em meu redor, comprimindo-me o pensamento, oprimindo a escassa disponibilidade para raciocinar. Senti-me sufocar. Uma pressão forte tomou-me conta do coração, invalidando-me de sentir algo mais que a angustiante ânsia de me libertar, num desejo reprimido de poder voltar a sentir a suave brisa que só os homens livres experimentam e a ela se entregam de corpo e alma. Agora o tempo acelerava. Há medida que escasseavam, os poucos minutos que me distanciavam daquele epílogo cada vez mais previsível passavam por mim fulgurantes, impiedosos, céleres, como os homens e as mulheres que circulam pelos movimentados centros cosmopolitas, sabe-se lá em busca de quê. As fontes latejavam-me num ritmo que depressa me agoniava ao passar pela multidão vibrante, extasiada e sedenta de espectáculo. Ladeado por entroncados protectores da minha figura cada vez mais liliputiana, confrontei-me com a escadaria, último obstáculo que antecedia a minha subida ao pedestal que tanto receava. O público ruidoso entoava cânticos e bradava sons de revolta, de fúria latente prestes a eclodir. Era chegado o momento. Por trás de mim senti aproximar-se, como uma enorme e imponente sombra, a figura assustadora do carrasco. O colete de couro que envergava e que deixava expostos dois volumosos troncos que lhe serviam de braços, era incapaz de suster o nauseabundo odor do suor que, como uma segunda pele, reflectia nele dias e dias de execuções consecutivas, vividas em plena excitação. O sabor de matar, de ser responsável pelo verter de litros de sangue quente e espesso, de poder admirar em primeira mão o corpo ainda inconformado com a morte, debatendo-se em espasmos finais de uma luta perdida pela sobrevivência impossível. O prazer de ver rolar cada nova cabeça pelas tábuas de madeira impregnadas de líquido vital ressequido, mas constantemente rebaptizadas por novas doses de vermelho vivo do momento. Ergueu bem alto o enorme machado com a ligeireza de quem eleva no ar um maço de algodão. Um reflexo de luz cintilou na extremidade da lâmina refulgente como que a dar o sinal há tanto aguardado. A resposta pronta da multidão ao rubro proporcionou-lhe nova descarga de adrenalina. Consciente do seu poder, dono e senhor da vida que a seus pés se penitenciava, chorosa, joelhos no palco onde jogava a sua efémera existência e cabeça pendente num molde sujo, tantas vezes solicitado, aquela figura possante grunhia com a possibilidade de mais um golpe certeiro. Nas suas mãos repousava o destino daquela triste figura que agora brindava os seus derradeiros momentos com uma visível mancha escurecida junto às partes baixas. O medo final, o desespero, o último suspiro, tantas vezes imaginado, agora inevitável. Um derradeiro som que se abafa, uma confusão que se faz tranquila e a paz. Por fim, o fim. É a loucura de quem hoje assiste, sabendo que amanhã será também ele alvo da chacina que alimenta a fome daquela horda de sanguinários. Perfeito. Um plano digno dos melhores compêndios. Dos confins do espaçoso “set” ouve-se uma voz que ordena “corta”, logo seguida de um sonoro “perfeito! Excelente take”. Segue-se um curto intervalo de quinze minutos para molhar as gargantas sequiosas, trocar umas ideias sobre o plano seguinte, retocar as maquilhagens. Pois que o espectáculo não pára e o filme tem prazos a cumprir. Por isso, “back to business” com novo chamamento de guerra: luzes! Câmara! Acção!

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