Em devagar
Não lhe consigo a fuga, uma distância que se ganhe a cada avanço. Sinto que um passo que dou, logo dá dois e de mim se aproxima, como o susto de encontrar o monstro que habita sob a cama em que durmo inquieto. Sobressalto sobre sobressalto, a vida estática, a estátua em que me faço, receoso do que me espera ao virar da esquina da próxima mudança. Abutre cínico, de olhar aguçado na presa que definha e sem saber já caminha, rumo à armadilha que se perfilha, voraz, mordaz. Banquete de reis, enquanto pelo deserto se cansa e morre, sem nenhum oásis que lhe valha, canalha que nem a mão lhe estende. Ver-se assim, a morrer em devagar, sabendo-o e nem se lhe poder virar, sentir-se de novo e contrariar, dizer que ainda não é agora, para já. É tão mais forte a força que o leva a desistir. Braços pesados à vertical de um corpo que, moribundo, aguarda apenas pela cobarde estocada final do pássaro frio que nos consome só de olhar. A areia é um manto de tantos grãos que juntos são multidão onde nos enterramos. É padrão único, enganador, a traição a quente que vomita fogo em golfadas pesadas que nos gelam as entranhas. As veias. Sangue congelado que veste a estátua por dentro e lhe dá a roupagem da desgraça, em tons que se erguem indefinidos e sempre na moda. Um oásis seria verde sobre este manto igual, por isso se ausenta e entra, mas noutro filme. A cena repete-se num drama que não clama por fama e que tem por destino o esquecimento de quem nada é ou ambiciona. Agora que se vê a morrer em devagar, sabendo-o e nem se lhe poder virar, sentir-se de novo e contrariar. Morrer para sempre, sem volta a dar. Ponto final, no momento em que sucumbe ao pesado enlace do passo gigantesco que lhe acode e socorre, evitando-lhe a dor de seguir. De se fingir capaz, de se julgar proprietário cego de um bem que nem isso, nem nada, nem ninguém o tem. O falso que se intromete, em tudo se mete, inoportuno que nos compromete, um muro que se ergue e cresce, cresce, a tapar o sol, a fazer a noite, a impingir-nos o escuro e a vendê-lo, como quem vende a mãe, vende tudo, até a alma ao diabo. Sabes que em tempos que já lá vão, também eu fui uma majestosa árvore como tu? Linda, alta, frondosa, única. Quantas e quantas vezes proporcionei refúgio refrescante a quem sob mim se acolhia em dias de sol intenso e abrasador. Como este que aqui vês, a queimar-me a tez, que pálida afirma o terror pela morte. E serenidade. A mesma serenidade que tu transmites, também eu a propiciava às pessoas. Para que pudessem parar um pouco e reflectir sobre as suas vidas. O que tu és, já eu fui. Em tempos idos, hoje páginas amareladas pelo correr do tempo ofegante. Incessante. Como o deixei de ser, agora que desisto, de tudo me dispo e a este deserto enfermo me entrego, às mãos de um destino que sempre assim me quis, mas que, traiçoeiro, mo omitiu. Segundos antes pressenti a estocada e ele riu. Riu.