por migalhas, em 31.10.25
Entrelaçaste os teus cabelos naquele dia
Sob uma aurora que previa chuva
Sabias ao que ias
Na jura de promessas
Antes da labuta bruta
Que a ceara não espera
A terra não ajuda
E então com chuva
A mesma que o teu cabelo beijou
No perfume do tempo que partilhámos
Sabíamos ao que íamos
E ainda assim o cabelo entrelaçaste
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 28.10.25
Em cada canto encontro-te
Um pedaço aqui, outro pedaço ali
Foste, mas para trás ficaste
E do que deixaste encontro pedaços
A cada canto, por onde me movo
Em todo o lado onde me desloco
Levo-te, trago-te, amparo os teus pertences
Olho e ali estás, aqui
À minha volta, à nossa
Dizes que partiste
Mas nunca estiveste tão aqui
Em cada canto, a cada instante
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 24.10.25
Os prados alongam-se ao horizonte
Esticam seus braços de fineza feitos
Vejo-os sem fim, perco-me nos seus limites
Que não distingo, nem conheço
Tudo é terra, daqui até onde a imaginação alcança
Movem-se gestos inseguros
Pensamentos ganham forma em forma de partida
A bagagem tenho-a na memória
Segue comigo como o vento e este céu obscuro
Num cinzento que marca cada dia
A anteceder trovoadas e queda de granizo
As culturas arruinadas, os prados perdidos
Sigo sem destino
A bagagem tenho-a comigo
Ela é memória
Crime e castigo
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 20.10.25
Trago-te numa fotografia
Num momento que captei e neste pedaço de papel guardei
Estás um enxovalho
De tanto te trazer colada a mim
Num bolso, ora noutro
Que eu estou sempre a recordar-te
A ir ao bolso buscar-te
E de cada vez mais indistinta
Que os meus dedos gastam a tinta
Desgastam o teu sorriso
Enxovalham o teu vestido
Nesta fotografia tua
Que trago para sempre comigo
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 15.10.25
São as palavras que atravessam o mundo
são elas que vão por ele a fundo
ao seu âmago amargurado
à sua génese sem idade
tacteando sensações
oscultando quantas convulsões
em si entranhadas, em nós à flor da pele
São elas, as palavras, que trazem o mundo até nós
esse mundo com todas as letras
que na nossa singela pequenez julgamos entender
julgamos ler nos gestos e no olhar
por entre linhas ou por assim dizer
Que para esse colosso, que é o mundo
em toda a sua eloquente beleza
natural destreza ou imenso saber
não há palavras, mesmo aquelas que o atravessam
com engenho e arte de o dizer
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 10.10.25
Tanto mundo lá fora e eu aqui asfixiado
tanto ar respirável e eu entre quatro paredes degradadas
pelas quais escorrem águas passadas
Este espaço que habito encolhe comigo
as janelas são a alma do padeiro
o telhado um tabuleiro, entretanto desabado
juntos partilhamos migalhas
restos e restinhos, o lixo dos que, acima, se banqueteiam na soberba
Por entre líquenes e musgos, a fazerem-se de convidados
envolto em notícias passadas e caixotes amarrotados
deposito este corpo, mas nunca descansado
que na penumbra existe o medo de ser acossado
Aqui vivo esta embriagada sanidade que já não vê por si
mas somente pelo olhar profundo da impossibilidade
com pouco mais que uma sandes de rançosa manteiga e fiambre apodrecido
incapaz de me lembrar porque fui esquecido
Nesta fome de quem não come há tempo demasiado
de quem sem dinheiro no bolso, nem bolso onde esconder as mãos
olha a montra e nela tudo almeja
lampeja o ridículo, que trôpego tropeça na realidade
directo ao chão que tão bem conhece e a queda lhe endurece
destino impregnado de bolor, de ferrugem de cólera latente
na imagem decadente de quem não sendo doente, doente é
enfermo se sente
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 06.10.25
Expropriado fui
deste estranho desígnio de viver
Fora!
Que a contar desta hora, o senhor já aqui não mora
Tomada a decisão
Votada na especialidade
Ela já vigora
Plena de irreversibilidade
Aqui já nada tem a reclamar
Ou voz que se faça ouvir
Que este estado consigo não se compadece
Nem ninguém esse direito lhe reconhece
E vou, porta fora
Escorraçado que nem cão
Destituído das funções de aqui viver
Entre os que são
Ou, iludidos, julgam ser
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 02.10.25
Tem gente que diz que sabe
Tem gente que diz que ouviu
Tem gente que não sabe a idade
Daquela gente que diz que viu
Quem sabe assim seja
Quem sabe assim se manifeste
Pois aquilo que mais se almeja
Esconde-se para lá deste azul celeste
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 26.09.25
De olhos fechados e sem roteiro
sigo o caminho que me conduz à lembrança
essa balança, esse presente
quiçá envenenado, amaldiçoado
pelo que hoje sustenta e me relembra
a toda a hora, a todo o dia
e que chegou a ser alegria
há escassos minutos atrás
que o tempo é quando ele nasce
e pela mão leva a criança
que veloz voará na esperança
até adulta, até velha que nem um trapo
então apenas farrapo
entregue às mãos de uma memória
tão breve quanto esta história
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)
por migalhas, em 23.09.25
Lá o mar é mais belo
Ainda mais
Lá o céu é mais amplo
Ainda mais
Lá o espaço é mais infinito
Mais ainda
Lá, onde só tu e eu nos revelamos
Ainda mais unos
E a cobro dos demais, nos amamos.
© Copyright Miguel Santos Teixeira (2024)