"A Estrada" é a história verdadeiramente comovente de uma viagem, que imagina com ousadia um futuro onde não há esperança, mas onde um pai e um filho, "cada qual o mundo inteiro do outro", se vão sustentando através do amor. Impressionante na plenitude da sua visão, esta é uma meditação inabalável sobre o pior e o melhor de que somos capazes: a destruição última, a persistência desesperada e o afecto que mantém duas pessoas vivas enfrentando a devastação total.
Naqueles primeiros anos, as estradas estavam cheias de refugiados amortalhados nas suas roupas. Usavam máscaras e óculos de protecção, sentados na berma com os seus andrajos no corpo, quais aviadores reduzidos à indigência. Traziam carrinhos de mão a abarrotar de bugigangas, puxavam carroças ou reboques. De olhos a brilhar no crânio. Carapaças de homens sem uma réstia de fé aos tropeções pelos viadutos, como bandos migratórios numa terra fértil. A fragilidade de todas as coisas enfim revelada. Velhos dilemas inquietantes esvaziados de sentido, dando lugar ao nada e à noite. O derradeiro exemplo de uma coisa leva consigo toda a categoria. Apaga a luz e desaparece. Olha à tua volta. Nunca é imenso tempo. Mas uma coisa o rapaz sabia. Que nunca é um breve instante. (...) Os dias passavam, vagarosos, sem que ninguém os contasse, os assinalasse num calendário. Lá longe, ao longo da interestadual, enormes filas de carros calcinados e cobertos de ferrugem. O metal despido das jantes mergulhado numa pasta dura e cinzenta de borracha derretida, em anéis enegrecidos de arame. Os cadáveres incinerados, mirrados até ao tamanho de crianças e apoiados nas molas nuas dos assentos. Milhares de sonhos sepultados naqueles corações reduzidos a lascas de pedra. Eles continuaram a caminhar. Palmilhavam o mundo sem vida como ratinhos numa roda. De noite, silêncio de morte e trevas sepulcrais. Tanto frio. Quase nem falavam um com o outro. Ele tossia constantemente e o rapaz ficava a vê-lo cuspir sangue. Avançavam curvados. Sujos, andrajosos, sem esperança. Ele parava e apoiava-se no carrinho e o rapaz continuava a caminhar e depois parava e olhava para trás e ele erguia os olhos lacrimejantes e via-o ali na estrada, estático, a olhá-lo de um futuro inimaginável, a cintilar naquela aridez como um tabernáculo.
O escritor britânico Julian Barnes, quatro vezes finalista do Man Booker Prize, é desta vez o vencedor do prestigiado prémio literário, com o romance “The Sense of an Ending”, anunciou na terça-feira o júri em Londres.
Após uma reunião de apenas 31 minutos, o júri, presidido por Stella Rimington e composto por Matthew d’Ancona (escritor e jornalista), Susan Hill (escritora), Chris Mullin (político e escritor) e Gaby Wood (responsável da secção de livros do jornal Daily Telegraph), decidiu por unanimidade distinguir o romance de Julian Barnes, que será publicado em Portugal ainda este ano pela Quetzal.
A vitória do escritor de 65 anos, anteriormente selecionado pelos romances “O Papagaio de Flaubert” (1984), “Inglaterra, Inglaterra” (1998) e “Arthur & George” (2005), veio na sequência de uma das mais amargas e viperinas finais do prémio de que há memória – não entre os escritores finalistas, mas no que se refere aos comentadores, divididos, que ensombraram o processo de escolha do júri, acusando-o de colocar a popularidade acima da genuína qualidade das obras.
«No deserto do Arizona. Um jovem realizador obcecado com uma ideia para um filme: um único plano-sequência, uma única personagem. Frente à câmara e encostado à parede (“como num assalto ou num fuzilamento”), está Richard Elster, um intelectual que, ao serviço do Pentágono, traçou a cartografia conceptual da Guerra do Iraque (“eu queria uma guerra em haiku… uma guerra em três versos”). Quando a filha de Elster entra em cena, o fio da conversa filosófica dos dois homens é abruptamente cortado e a dinâmica da história conhece uma dramática inflexão.»
As pessoas duras é que fazem os tempos difíceis. Já vi tanta ruindade nos seres humanos que nem sei porqué que Deus ainda não apagou o sol e não virou costas a este mundo. (...)
excerto de Nas Trevas Exteriores (Outer Dark no original, segundo romance de Cormac McCarthy publicado em 1968).
No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas Subidas. Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos. Eles acenavam através das grades. Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!
"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho como um afectado "aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada e em cima, a uma janela, um homem, com um binóculo à frente dos olhos, espreitando para além do mar.
A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes. As moscas liam cartas microscópicas. Seis anos depois, peguntei a uma dama de Lisboa: Isto é real, ou fui eu que sonhei ?
Desperto o automóvel que tem o pára-brisas coberto de pólen. Coloco os óculos de sol. O canto dos pássaros escurece.
Enquanto isso outro homem compra um diário na estação de comboio junto a um grande vagão de carga completamente vermelho de ferrugem que cintila ao sol.
Não há vazios por aqui.
Cruza o calor da primavera um corredor frio por onde alguém entra depressa e conta como foi caluniado até na Direcção.
Por uma parte de trás da paisagem chega a gralha negra e branca. Pássaro agoirento. E o melro que se move em todas as direcções até que tudo seja um desenho a carvão, salvo a roupa branca na corda de estender: um coro da Palestina:
Não há vazios por aqui.
É fantástico sentir como cresce o meu poema enquanto me vou encolhendo Cresce, ocupa o meu lugar.
Desloca-me. Expulsa-me do ninho. O poema está pronto.
Estou na montanha e vejo a enseada. Os barcos descansam sobre a superfície do verão. «Somos sonâmbulos. Luas vagabundas.» Isso dizem as velas brancas.
«Deslizamos por uma casa adormecida. Abrimos as portas lentamente. Assomamo-nos à liberdade.» Isso dizem as velas brancas.
Um dia vi navegar os desejos do mundo. Todos, no mesmo rumo – uma só frota. «Agora estamos dispersos. Séquito de ninguém.» Isso dizem as velas brancas.