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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Ininterrupto, A Small Tale

por migalhas, em 13.11.09

Ininterrupto.

A provar a sua certeza sem recurso a grandes esforços. Bastava estar por ali a sentir-lhe o silvo de quem grita desesperadamente por uma qualquer ajuda que não se entende. Aflitivo, a querer esgueirar-se por quantas frestas se lhe propusessem e lho permitissem. A fazer-se convidado, a impor-se, a imiscuir-se nas nossas vidas, as que vivíamos neste instante em que se fazia figura mais do que presente, figura insistente. Lá fora reinava e queria-se a reinar aqui também. Uivava como os lobos uivavam quando o ouviam a gritar por uma qualquer ajuda que nem eles entendiam e por isso uivavam como que a dizerem-lhe:

- “Que queres tu, que sopras e gritas e uivas como um desesperado, perdido na noite escura que nem a mais escura de quantas noites sem lua, sem nada que nos alumie uma pista sequer, um sinal que possamos seguir à confiança.”

E ele sem receio, vergonha ou inibição de espécie alguma, a fazer-se imperial, a querer-se actor principal daquela noite escura, invisível como o breu que a cobre, nos cobre, manto protagonista do tempo que empurra em saraivadas de força bruta, sem licença ou permissão, impostas contra vontade. E eu ali, impotente, a tentar abrigar-me da sua fúria que me tinha a mim e a todos os que se lhe ousassem ao caminho alvos da sua ira desenfreada. Eram horas, as suas horas. Era tempo, o seu tempo. E ele sabia-o, num reinado que não escolhia altura certa, pois que todas o eram, para ele, prepotente ser que tudo levava na frente e aí de quem lhe fizesse frente! Eram horas de deitar e ele acordado a todos despertar. Era tempo de dormir e ele lá fora a bater à porta e a querer entrar para a todos acossar. E quantos muros, e quantas fortificações ou elevadas muralhas seriam precisas para lhe abrandar o passo? Sim, abrandar, que travá-lo, nem quantas balas imaginadas. Invisível, mas nos efeitos do mais visível, campeão na velocidade com que se põe aqui e logo ali, mágico na arte em como se duplica, ora aqui e ali também, com igual vigor, com igual intensidade, chama, vontade. Sem aviso, que é sua a lei que lhe permite abusar, ser e estar a seu belo prazer, sem que nada ou ninguém lhe consiga um basta, um refrear de intenções que são sempre supremas, lei a vigorar sem mandato, sem eleição, que todo o mundo é sua jurisdição. E eu aqui, pequenino perante a sua ferocidade, a querer-se colosso sem freio que nos atemoriza e faz pensar. Serão estas frágeis tábuas, estas mínimas telhas, este alpendre agora sem nexo, de pequenas ripas erguido, qual mundo muralhado sem qualquer efeito, poder ou sentido, coisas capazes de enfrentar esta coisa que não se sabe, adivinha ou prevê, mas querendo é tudo e é toda a força que tudo consigo transporta? Aqui são vinte e três horas e trinta e dois minutos. Capicua. Coincidência? Ou uma certeza como a que ele é, agora, neste instante em que esbraceja tal e qual um enorme polvo, levando a quantos quadrantes a sua fúria, como não existe outra. Resta-me a esperança em que encontre a razão e nela se embale apaixonado, deixando aquele ímpeto de lado e trocando a sua força brava pela brava impetuosidade da paixão súbita, e de tão breve a consumir as suas forças que o hão-de deitar por terra. E nessa hora serei eu de novo, olharei o céu de novo e lá no alto encontrarei novo céu, a aguardar-me e a perguntar-me:

- Onde estiveste? Que fizeste tu, que nada te ouvi dizer enquanto ele berrou?

E eu não terei resposta para dar-lhe, apenas expressar-lhe que eram vinte e três horas e trinta e dois minutos e o tempo voava no seu colo, no meu, no do mundo que era seu então e seu será sempre e para sempre. Que é ele que impõe e nada nem ninguém jamais ousará sequer pensar que haverá lugar a qualquer outro modo, senão este que é o seu, o meu, o nosso, de todos.

Ininterrupto.

Mais umas linhas para a história

por migalhas, em 09.11.09

 

Editora nova, laboriosa, criativa, a querer-se diferente entre tantas outras, empenha-se na promoção de um evento de louvar: um concurso nacional de escrita. Alusivo ao tema "o fantástico", depressa a iniciativa se vê correspondida de uma forma nunca equacionada, superando mesmo as melhores expectativas. Decisão tomada sobre os autores a concurso seleccionados para constarem desta antologia inédita e eis que o meu nome consta entre os demais. Na categoria de Conto - pois também contemplava as de Poesia e Ilustração -  registo um honroso 5º lugar da geral, com o original "Esboços da realidade". Como nota final, deixo apenas referência ao primeiro lugar ocupado no critério de avaliação que directamente dizia respeito à qualidade da escrita. Vale o que vale, sendo que para mim representa o reconhecimento por tudo aquilo que tenho entregue a esta paixão que é escrever, assim mais e mais incentivada a ir sempre mais e mais adiante.

Na omissa luz do dia

por migalhas, em 07.11.09

Que poderia eu encontrar naquela praia à noite que não encontrasse de dia?
Na falta da luz que o sol lhe irradiava de dia, na preparação que havia que dar à vista para apurar algum do seu discernimento.
A apelar aos sentidos, aos outros, que a vista ali jogava desfalcada.
A atentar no mar, no ritmo como a maré se apresentava, nos ruídos que ali pareciam todos a estrear, no frio que se intrometia entre os demais receios.
A experimentar a cegueira e a louvar-lhe o valor.
Os pés caminhando descalços pela areia fria, ora seca ora molhada, mas irremediavelmente fria.
Eu um autómato, movendo-me sempre atento, sempre alerta, cana na mão e muita determinação no passo estugado, dentro do possível.
O que repousa numa praia à noite?
O que cresce enorme no mar, que não o vejo, das entranhas da sua profundidade imensa, tamanha área desconhecida que quanto mais noite dentro maior a dimensão.
E nem me atrevo a olhar o céu, esse ainda mais imenso.
Carregado de estrelas, tantas que me deixa perplexo na insignificância do que sou, no ridículo do peso, conta e medida que assaz me atribui no balanço das suas contas.
E as arribas. Erguidas do ventre da terra para ali se imporem, fazendo barreira ao progresso do mar. Tão ameaçadoramente altas e majestosas na sua imponência imperial de seres com capa e espada que nos impõem respeito e nos incutem um continuado estado de súplica face ao que são e representam.
E ao largo luzes. Dos barcos dos pescadores que tentam na pesca o seu ganha-pão. Toda a noite sobre o manto escuro e espesso que tudo esconde no seu estado frio e então descolorido. Nas redes parte do seu cerne, ainda a debater-se, vivo, pela manhã na lota, a troco da nota que lhes paga a noite passada na sua companhia, a do mar, a do manto intenso que sustem barcos, tripulações, carga que lhe subtraem, parte do seu cerne.
Fazia uma fogueira, mas isso denunciava-me. Por isso descanso sobressaltado sob o manto de sua majestade, uma arriba a servir-me de tecto, rezando para que, pela manhã, seja o sol a despertar-me e não uma qualquer sereia a cantar-me a morte que aqui arrisco, arrastado pelos tentáculos do mar, maré que por ali me sentir se ousou a ser maior e me puxou, e de repasto a seu amo me entregou, esse mesmo que me tragou, num festim a ser paga por tamanha ousadia, a de me fazer àquela praia na omissa luz do dia.

Lisboa, por Andrés Ramírez

por migalhas, em 04.11.09

"(...) a laboriosa capital portuguesa, que eu imaginava, nos meus sonhos febris, como uma cidade negra, com gente vestida de negro, com casas feitas de ébano, ou de mármore negro, ou de pedra negra, talvez porque no meu delírio febril tivesse alguma vez pensado em Eusébio, a pantera negra daquela selecção que tão bom papel desempenhara no Mundial de Inglaterra de 66, e onde nós, os chilenos, fomos tratados com tanta injustiça."

 

in "Os detectives selvagens", de Roberto Bolano

nas nuvens

por migalhas, em 02.11.09

Eu moro numa nuvem

Lá em cima, acima do ar esgotado, numa nuvem fofa e branca como a neve acabada de cair

Eu e tu e tantos como eu e tu, que lá de cima olhamos os outros cá em baixo, os que vivem abaixo do ar esgotado, em desassossego, numa vida corrida onde perdem o fôlego e perdem tudo

Lá em cima tudo é mais fácil, suspensos nos pensamentos de quem levita e assim leva a vida, tão diferente daquela vivida por todos aqueles que escolheram lá em baixo morar, abaixo do ar esgotado

São fardos pesados, escuros, carregados, seja de turbulentas águas, seja do que for que faz mal à alma

Lá em cima, nas nuvens, em cada qual, vivemos a vida no respeito pela vida de cada um como nós, igual,  ali conscientes da decisão de ser, mais alto, mais longe, mais sensato

Num quartel que é general de tantas tropas que se perfilam pela honra de serem soldados de uma paz que teima em reinar num estado de guerra que habita lá em baixo, nas profundezas da serpente em que nos tornámos

E nós no topo de um mundo que dizem moribundo, mas que ainda não se apercebeu de que assim, mais e mais perto de um céu que nem limite nem coisa alguma que lhe augure melhor sorte

Uma nuvem não refreia o passo, sempre estugado no seu obcecado percurso por seguir ventos e marés que nem um tenente obediente, deambulando sem se saber à nora, sem rumo ou hora que lhe dite o destino

Ele é circo itinerante, figura de segunda linha que no momento da verdade se esconde e manda fazer, aos outros, carne para canhão

Eu moro lá em cima, numa nuvem fofa e branca como a neve virgem que se suicida num salto do alto de um reino que deixa sem saudade

E como ela também eu embarco em cada viagem, mesmo que breve, a sugar cada milímetro do percurso que nos separa da partida à chegada, quantas vezes sem saber à partida o que nos espera à chegada

Eu não envio postais, não

Nem um, dos locais por onde passo, que são passos apenas meus, que percorro na fúria de me encontrar num canto de um qualquer continente, numa qualquer montanha mágica onde me refugie e de onde não mais regresse, para nela me fundir e à sua natureza me entregar, nela me emparedar para sempre, seu filho, o pródigo que voltou sem mágoa, apenas com fome e frio e cansado do que nunca achou longe dessa natureza que me pariu, apostada em ver-me seu salvador e afinal um logro, que apenas ousou regressar de mãos a abanar e nos seus braços se entregar, inocente, apenas com o fim de nela se refugiar, acagaçado, mijado de um medo que nunca assumiu e por isso lhe mentiu, desde a primeira hora até esta, em que cobarde nem nos olhos a enfrenta, na sua mente apenas tormenta e mentira que são água benta

Mas mãe é mãe, e mesmo sabendo-se atraiçoada ela perdoa

Mesmo débil e exausta e sem quem a defenda, de tudo ou de todos, ela olha-me, ela sim, nos olhos, e perdoa-me, ela a mim, eu que a matei, vendia-a sem peias ao primeiro que me ofereceu meio vintém pela sua já fraca figura e nem pensei, assim a entreguei

Eu que a morte lhe encomendei e como humano reles em que me tornei nem o seu velório presenciei

Sou um falso, sim, sou um desses que se fazem passar pelo que não são nem nunca hão-de saber ser

E eu a julgar que lá em cima, nas nuvens, a vida me perdoaria a ousadia, em forma de cobardia, de um dia lhe ter segredado que eu a salvação lhe conseguia, apenas e só a troco da sua boa-fé em mim, mentiroso compulsivo que qual desordeiro sem honra a todos mente e engana, afinal a troco de uma outra coisa tão escassa como uma refeição e uma cama, na qual se deita a julgar que o que sonha é o que vive, quando não vive nem um terço do que sonha, reles figura, grande cabrão

Assim perfeito é o destino, que como uma garra das entranhas me agarra e estraçalha e faz das tripas expostas figuras de um ser morto em que tornei numa putrefacção que nem um cadáver com semanas, a vir de dentro para fora ou de fora como o gume que se sente na estocada, primeiro como uma picada breve que logo perfura a pele e a carne que se lhe segue numa dor que me cega e então faz ver que nada na vida se lhe compara, a farpa, crescente na lancinante mas saborosa dor de me saber moribundo, sem fundo nem sorte a que me agarrar, a afogar num precipício de tantas almas penadas que nem as sei, e assim eu, em dia de finados o ano todo de uma ponta à da faca afiada que me tocou e me  fez saber então que antes morto sentido que nada em vida que me agasalhe