Seguia na direcção que julgava a correcta, quando um alce prostrado bem no meio da via me fez repensar o assunto. Não sabia da existência deste género animal ali, bem no coração dos meus sonhos. Nunca me cruzara com um e esta primeira experiência deixava-se ansioso. Estaria ele ferido ou a ressacar de uma noite mal dormida? Os lagos haviam gelado totalmente e da estrada onde me encontrava agora, embasbacado e perto de gelar às mãos de um vento cínico e falho de complacência, observava o que pareciam ser pistas de patinagem, brancas, tão brancas como a neve que me acompanhava desde o início desta minha viagem. Flocos fofos soltavam-se do ar, para se irem sobre as frondosas copas dos cedros deitar. Nisto, o alce mexeu-se. Deu sinal de se estar a recompor daquilo que o afectara e ergueu-se. Lentamente, a início, e de um movimento ágil e repentino, de seguida. Sacudiu a massa branca que o cobrira até então e num toque de mágica, majestoso de novo, encontrava-se em pé, olhos nos olhos com os meus, como que a estudar-me, a tentar entender que faria eu ali, bem na sua frente.
Seguia na direcção que julgava a correcta, quando um homem, ali estático, bem na minha frente, me fez repensar o assunto. Não sabia da existência deste género animal ali, bem no coração dos meus sonhos. Nunca me cruzara com um e esta primeira experiência deixava-se ansioso.
Olhámo-nos por um período que pareceu para sempre. Nada sabíamos um do outro e nas nossas mentes estávamos apenas a tentar captar cada pensamento alheio. Sem sucesso. Foi quando o alce se prostrou por terra e eu recuei ao carro para regressar ao princípio do sono que surgira, também ele, inesperado, no meu caminho. Nem sabia que sonhara, o que sonhara ou porquê, mas sabia que os lagos haviam gelado e que o alce ali estava, prostrado, inanimado. Bem no meio da via, bem na minha frente, sem sinal de vida aparente. Tal e qual eu me sentia, no instante em que desfaleci para a vida e senti o calor aconchegante da lareira acesa e do crepitar afável de um lume que derretia bondoso essas imagens esquecidas. Por fim, esquecidas.
Uma sexta-feira que começa com uma ida involuntária a uma clínica minha desconhecida, para fazer exames e análises que não pedi, não pode ser uma sexta-feira de sonho. Daquelas que usualmente aguardamos, ansiamos, logo desde os primeiros raios de luz da segunda que a antecede. Se bem que este facto, só por si, já fosse mais do que suficiente para que esta sexta-feira não se enquadrasse minimamente na minha concepção de sexta-feira perfeita, ou sequer perto disso, um outro, não menos perturbador, fez questão de se associar aos festejos. Falo da brutal alvorada de que fui vítima pela segunda noite consecutiva (hoje com o ganho de uma hora face à anterior), ocorrida eram apenas 5h30 da madrugada! Sem prévio aviso ou indício mínimo que minorasse o seu efeito devastador, este despertar alucinante teve por veículo o incessante, crescente, irritante, desesperante, angustiante e todo o tipo de …ante imaginável, choro da minha preciosa filha, a braços com mais uma crise de dentes. Enfim, quem tem filhos…
Mas voltando à clínica, salvo seja, admito ter ficado bem impressionado com a simpatia e profissionalismo da equipa médica presente (na sua íntegra feminina) e só me posso queixar mesmo do dinheiro gasto no parquímetro e da litrada de sangue que me foi ostensiva e barbaramente subtraída (será que vou poder reavê-lo mais tarde?), com alguma relutância minha, diga-se. Ao pé disto, mijar para aquele copinho mínimo sem pingar os dedos, foi coisa de meninos. De resto, fiquei a saber que tenho um excelente olho direito (se bem que o esquerdo é da mesma idade), que devo tratar com urgência esta constipação que soma já 15 dias seguidos (prevenindo que alastre e se torne em algo pior) e que peso à volta de 58 quilos (daqui não vem qualquer novidade ao mundo).
Foi uma manhã diferente, ao menos isso. Vi, enquanto esperava por cada nova leva de exames, as notícias, o trânsito e o princípio do programa televisivo do Goucha, o que me pôs a pensar na razão por que as pessoas ali presentes gritam, berram, tudo aplaudem e riem, riem incessantemente de coisas sem a mínima piada. Se calhar é por que não vejo aquilo com regularidade, senão entendia. Digo eu.
Mas passou-se o tempo. E ainda bem, porque detesto ir a consultórios, sejam eles quais forem, seja por que razão for. Ainda assim, antes consultórios que hospitais. Aí é que a coisa fia mais fina, com todo aquele típico e agoniante aroma a éter a ocupar cada cm2 de ar respirável e todo o aparato de batas brancas e instrumentos de tortura por ali espalhados.
Enfim, fica o desabafo, mas, mais do que isso, o enorme desejo, vontade, querer, que uma sexta destas tão depressa não volte a acontecer. Sob risco sério de passar a adorar as segundas!
Ali permanecesse, estático, por um momento que fosse.
E nesse instante apenas para mim se voltasse e me explicasse.
Me dissesse, me confessasse que o movimento que diariamente executa também mexe comigo.
Seja aqui, seja onde me encontrar, que é ele que me leva a protagonizar para além do banal, do rotineiro pára arranca que mói, mói, desgasta, consome e quase sempre dá em nada.
Queria parar, ficar quedo, imóvel como a estátua que todos os dias me vê, observa os meus passos já indiferentes e em troca me sorri de escárnio. Pois ela dali não sai e sou eu (e tu e tu e mais tu e todos…) quem segue para todo o lado, embora nunca chegue a sítio algum.
Por ela passo, todos os dias, mas é ela, imóvel, quem ri por último. Que de todos troça, dos que se movem, mas que não imaginam como ou porque o fazem. Dali ela sabe que é nosso destino o mesmo acto, mundano, ensaiado a cada nova aurora, aquele que nos há-de levar a insanos, nós, os humanos.
Como baratas tontas, num rodopio sem nexo, um filme, uma mesma cena, apenas aquela, constantemente rebobinada, revivida, passada em retrospectiva, repetida e repetida, a cada dia. Sempre igual, banal, solitária, um ou outro pormenor que se desvia da sua rota comum, mas na sua essência assim. Um sempre permanente.
Um acordar sem novidades, faça sol ou chova copiosamente, que se perfaz e materializa como quem sabe que tem de vestir uma camisa, abotoar cada botão, lavar o rosto, comer apressadamente uma sandes, tudo para continuar o que não tem sequer continuação.
A eterna ânsia por bem fazer, dar o nosso melhor, mas com que fim? Está tudo tão longe, confuso, difuso. Há algo lá fora que nos mereça este intento?
Um labirinto, é onde me movo. E da saída não tenho noção, nem plano de como tentá-la.
Deixo-me guiar, moribundo e sem forças, sei que nada e tudo são apenas conceitos, e já nada me conforta.
Para quando a sentença final deste julgamento que nos tem a todos por arguidos.
Não sei que seja, nem tão pouco se o posso ser, se mo permitem. Só sei que me movo, já não sou eu, é-me imposto, mecânico.
Só queria parar. E que o mundo parasse em retorno. Que apenas para mim se voltasse e me explicasse, me confessasse, que o movimento que diariamente executa também mexe comigo.
Dava por si, no momento em que o frio da água lhe cumprimentava os pés nus.
Era noite, mas instantes antes caminhava pela areia branca e fina como farinha, sob um abrasador e altivo sol que era elemento único a destoar no céu apenas de azul pintado.
A praia era sempre a mesma. O encadeado de acções também. Apenas desconhecia como e porquê ali se encontrava a cada novo dia.
Obviamente entusiasmado pelo radioso dia e pela extensão de areia branca e fina a perder de vista, caminhava decidido, confiante, praia fora ao encontro de um mar que retocava feliz aquele quadro que ali se compunha para si.
Andava, nem sabia quanto andava, sorria, sabia que sorria, a felicidade estampada no seu rosto a cada novo passo, e o mar que demorava a alcançar.
Subitamente, vinda de lado algum, de origem que desconhecia, uma neblina pesada, um denso nevoeiro, tudo arrebatava, tudo fazia sumir, tudo engolia à sua passagem.
Parava, então parava. Não voluntariamente, mas quase em resposta imediata ao temor que subia de tom a cada segundo que voava breve.
Um frio indescritível toldava-lhe qualquer veleidade em prosseguir. E era então que se sentia realmente, naquele momento em que o frio da água que tanto procurara, agora lhe cumprimentava os pés nus.
Pouco vislumbrava naquele cenário cinzento e pesado, mas o pouco que via dava para entender que a maré subira sem aviso prévio. Chegara-se a si e jogava agora a sua vida para o tabuleiro das possibilidades.
E só quando a noite sucedia ao manto espesso, com a mesma rapidez com que este surgira, é que se apercebia da sua real e aflitiva situação.
Como ali fora parar, não sabia contar. Como tudo se precipitara rumo àquele desenlace, igualmente. Sabia apenas que habitava o único pedaço de areia branca e fina ainda não totalmente consumido pela fria, mas curiosamente límpida, água, e que por todos os lados esta se instalara, provocante, profunda, a mostrar por que era força da natureza.
Então, liberto das correntes de ilusão que o haviam mantido a saborear o quanto impotente se mostrava, correu veloz, nadou, gritou gritos, uns mudos outros não, e viveu-se impotente de facto, numa realidade de que não despertava, por mais que quisesse. E queria por demais.
Tentou recuar por onde julgava ter-se aventurado, então feliz, então despreocupado, mas nem por aí. Por lado algum se adivinhava a solução, a saída daquele cenário que era tudo e mais confusão.
Já nem a pequena ilha lhe servia de consolo, de mão amiga que lhe garantisse guarida. Dos joelhos à cintura, pelo peito, pescoço à vista, a previsão do sufoco, do ar a esvair-se, fugidio. O pânico a chegar-se, a ganhar força e a pesar para baixo, a debater-se e a sagrar-se vencedor. E sem nada a fazer.
Apenas assistir e ver morrer, olhos bem abertos, expostos ao maior terror, sem nada poder fazer para evitar, pela sobrevivência poder lutar. Nada. Apenas desfalecer, no instante em que depôs as armas, impotente, sabendo que deu o que tinha e ainda assim não foi suficiente. Pulmões violados, já nada pela frente senão a morte, para lá de eminente, estado já presente. Esgota-se o ar, as forças, a réstia de vida que o mantinha. E sereno, por fim sereno, liberta-se das amarras e deixa-se ir ao sabor de quem o quer tanto levar.
Escrevo hoje, mas remonta à passada sexta-feira aquilo que considero ter sido uma importante vitória das causas ambientais. Falo, como muitos já terão adivinhado, dos galardoados com o Nobel da Paz para 2007. Da paz? Sim, da paz. Da paz obviamente necessária, fundamental mesmo, para que se dê resposta eficaz às muitas e prementes preocupações, cada vez mais fundamentadas, sobre o estado actual do ambiente a nível global. Ao receber este prémio, juntamente com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC), Al Gore terá aberto um precedente no que diz respeito ao próprio termo paz. Com este feito, penso sinceramente que, de hoje em diante, paz e ambiente estarão definitivamente destinados a viver lado a lado, indissociáveis, como na realidade, e pela lógica, o são, efectivamente. Só que, de hoje em diante, reconhecidamente por todo o globo, não fosse haver agora um aval de peso que o justifique. O aval de uma instituição maior, com a devida e reconhecida credibilidade, capaz de se fazer escutar a vários níveis um pouco por todo o mundo. E isso, penso, virá fazer toda a diferença. O ambiente e as causas ambientais, mais do que o IPCC e Al Gore, é quem sai verdadeiramente vencedor da entrega destes prémios. Pois o tópico volta a ser referenciado, volta a estar na ordem do dia, nas bocas do mundo e, mais importante do que tudo isso, foi alvo de uma reflexão cuidada e atenta por parte de altos responsáveis, os mesmos que todos os anos seleccionam, elegem e, em último caso, entregam os mundialmente consagrados troféus. São pontos ganhos para esta nobre causa, são novos apelos que se prevêem, são mais e mais vozes que se juntam às que já se fazem ouvir. Penso mesmo que independentemente de se ter feito justiça nesta atribuição, do merecimento que muitos podem pôr em causa em relação ao nome de Al Gore, uma coisa foi um claro recado para o mundo: que existem pessoas nas mais altas esferas realmente preocupadas com as mudanças climáticas provocadas pelo Homem e que estão assim a contribuir de forma clara e inequívoca para uma adopção de medidas necessárias para a luta contra essas mesmas alterações. Se dúvidas houvesse, eles andam, de facto, por aí.