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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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A voz

por migalhas, em 29.07.05
De onde provem aquela voz que me soa nas horas vazias?
Nos momentos em que me retiro para aquele canto escuro, e me distancio da minha existência mundana. De que é ela feita, que soa tão bem, tão apaziguadora?
Por vezes, quase e apenas um sussurro íntimo e apaixonado que me segreda ao ouvido o que eu mais quero ouvir contar. Outras, na distância de uma miragem quase ausente e ainda assim presente na mensagem que me faz chegar.
Coloca tudo tão definido, tão claro na minha cabeça, como um refrão fácil de memorizar e que desejamos vezes sem fim repetir.
Vem ao meu encontro, sem encontro marcado. Aparece apenas, como que guiada pela ausência, seja de luz, seja de mim. Abstraído, sigo-lhe o ritmo e em breve comungamos do mesmo fim, num mesmo comprimento de onda.
Somos dois mas apenas um se revela.
Entoamos cânticos conhecidos, melodias gastas pelo tempo, partilhamos do mesmo espírito.
Tem dias em que discordamos, é verdade. Quando as palmeiras não o são e é de cactos espinhosos que nos sentimos rodeados. Nessas alturas, tudo muda. A sintonia desvanece-se, o cordão umbilical desprende-se e cada um é um, diferente do outro. Não vai cada um para seu lado, não. Tentamos o diálogo, a reconciliação, a mesma partilha de ideias e pensamentos comuns, de contornos tão incrivelmente definidos. Podemos atravessar um deserto árido, abrasador, extenso na sua incerteza. Mas é sempre no mesmo ponto que nos vamos encontrar. Numa esplanada à beira-mar, embelezada pelo pôr-do-sol carregado de tons ocre que adormecem na linha do horizonte longínquo. Ao som das suaves ondas que, já sem forças, se arrastam até à areia fina e aí se esvaem num último, mas esclarecedor, desabafo. É neste local que sempre nos reencontramos. Ao fim de cada desavença, de cada desentendimento ou desacordo de ideias. É aí que fazemos as pazes e, de novo, nos ouvimos a apenas uma voz.
De quem será essa voz? De onde vem ela e por que teima em cruzar o seu caminho com o meu?
Às vezes só lamento que não surja mais vezes ao longo do dia. Que não me faça parar, nem que fosse por um minuto, para ponderar. Pesar nuns pratos de balança imaginários o que faço, de um lado, e o que quero fazer, do outro. Para onde vou, o que quero realmente desta vida que, constantemente, corre em sprint connosco, sempre a tentar levar a melhor. E se ela é veloz. Passa por nós com tal desenvoltura que quase não a presenciamos.
É preciso que a voz nos confronte para então, quase a medo, nos tentarmos a tocar a vida. Ao de leve, como quem toca a pele de um animal feroz adormecido. Só então nos mentalizamos que fazemos parte dela e que o nosso querer conta.
Mas é só quando aquela voz me soa tão bem, tão apaziguadora na cabeça, que me atrevo a confrontar o meu passeio por esta alameda que é a vida. A fazer-lhe frente e a tentar saber se devo seguir o que a sedutora voz me aconselha ou o que o dia-a-dia me tem já reservado.
É por isso que gosto tanto daquela voz. Pois ela faz-me ver outras possibilidades, abre-me portas, aponta-me caminhos que jamais imagino existirem durante o curso desta tumultuosa travessia. Só gostava de saber quem é ela realmente e como consegue tão claramente dar-me o que, afinal, sempre quero. É apenas uma voz, mas sinto-a o espelho do meu ser. Sempre que me resolve aparecer. Sem se anunciar ou comigo encontro marcar.