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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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De emoção infectados

por migalhas, em 30.06.05

Custa tanto, tão pouco ou quase nada, amar e ser amado.

Dissuadir o coração de que não necessitamos de nada mais do que a fria razão, que estamos bem assim, obrigado, sem o tremor dessa emoção que nos seduz a cada virar de esquina, numa atracção continuada ao abismo profundo que contrariamos no desespero de uma última tentativa de nos agarrarmos à vida neutra e de racional apenas feita.

A toda a hora ele espreita, nos sussurra belas melodias, entoando cânticos que nos deleitam e sugam para as suas malhas de aroma doce, melosa textura.

Não nos permite qualquer distracção ou a mais singela veleidade, pois à primeira oportunidade tenta-nos com o potente veneno da sua ternura, com que nos trespassa o peito, contamina o coração, espraiando a pestilenta infecção, levando-a a quantos cantos sombrios, mesmo aos mais recônditos, com que depois se banqueteia, embevecida com a sua vaidade.

Enquanto nós nessa angústia, nunca breve, a que moribundos nos seguramos de cada vez que nos perdemos, de cada vez que já nada temos, senão a recordação do quanto sofremos em seu louvor.

Haverá ainda?

por migalhas, em 27.06.05
Haverá fumo sem fogo?
Amor sem paixão?
Hoje sem amanhã?

Haverá bonança depois da tempestade
Perdão depois do castigo?
Um dia após outro?

Haverá ainda tempo para dar?
Muros para derrubar?
Novas canções para cantar?

O que quer que ainda haja
que nos faça correr, saltar, vibrar
o coração pungente mil emoções bombar
ou a nossa consciência alertar
é a prova de que não existem limites
fronteiras ou barreiras
que se interponham entre aquilo que somos
e tudo o que ainda ambicionamos ser.

Será que ainda há esperança?
Que vale a pena lutar?
Esperança haverá sempre
para ela tenhamos tempo e a ela nos dediquemos
de corpo e alma como se quer
sabendo que a sorte, a nossa sorte
somos nós mesmos que a fazemos
numa luta a cada dia ganha
a cada nova hora alcançada
em medos e anseios sempre alicerçada.

Haverá sempre lugar para um pouco mais
para esticar a corda para lá do possível
chegar mais longe
gritar mais alto.

Haverá sempre mais
se de nós dermos também e sempre um pouco mais.

O reflexo

por migalhas, em 22.06.05
A falsa intensidade do reflexo expandido, logo trucidado no plano espelhado que o limita e impede de respirar. Assim se sentia de cada vez que se confrontava com a sua repetição invertida num mundo paralelo e quase cópia do real, não fossem pequenos detalhes, pormenores que a olho nu poderiam facilmente escapar. Não o espantaria se certa vez a mão estendesse e o outro lado alcançasse. Atravessando a espessura sólida do material físico que se interpunha entre si o lado de lá. Intrigado estava e muita curiosidade transpirava, só de pensar que existia uma ínfima possibilidade de lá poder chegar. Tantas e tantas vezes tentara, sem êxito. Subjugado que estava à obsessão que dele se apossara e que, prestes a levá-lo à loucura, procurava-lhe antes a cura num acto desesperado a que se propunha. Abeirou-se receoso, mesmo já tendo repetido aquele ritual vezes sem conta. Despojou-se de tudo, até do seu íntimo calcado pela moral, pelos condicionalismos mundanos, e atirou-se de cabeça. E só naquele momento compreendeu. Compreendeu que tinha de se soltar, de se desprender de todas as amarras que o mantinham preso ao lado de cá, para que lhe fosse possível passar-se para o outro lado. O lado de lá do espelho. Renascido se sentiu, mas logo traído pela visão. Igual, horrorosa, cópia da que deixara milésimos de momento antes e a que já não podia regressar. Agora era filho do mundo paralelo, aquele outro a que sempre ambicionara e com ele tantas vezes sonhara. Era igual, apenas invertido. Nada mais do que isso. Ergueu-se e caminhou, sem saber que rumo tomar ou ao que se agarrar. Apenas caminhou e do espelho para sempre se afastou.

Ou como a vida também pode ser ensinada

por migalhas, em 16.06.05
Joel era poeta. Todas as madrugadas, depois de fazer a ronda que lhe competia como guarda nocturno e de uma breve passagem pela padaria para confeccionar o pão que logo pela manhã era alvo de grande procura, rumava a casa para um duche rápido e mudando de indumentária dirigia-se à escola secundária onde leccionava Português. Findas essas horas de transmissão de conhecimentos e saber, o seu destino era o restaurante típico, bem no centro da cidade, onde era cozinheiro e onde, embora de outra forma, também se dedicava à transmissão de conhecimentos e saber, estes por via do sabor. Terminada a hora do almoço, vestia a pele - ou deveria dizer a farda - de funcionário do museu municipal e aí voltava a fazer uso da sua tendência para ensinar e despertar a curiosidade sobre outros mundos, outras culturas. De quando em vez - nos curtos períodos que mediavam entre uma visita e outra - Joel sentava-se num dos bonitos e lustrosos bancos que pontuavam aqui e ali o amplo espaço das exposições e punha-se a admirar a beleza de cada tela ali exposta. Compunha aí alguns dos seus poemas, num velho bloco de notas que lhe fora oferecido por um seu dedicado aluno de piano, instrumento que, a par da guitarra clássica, ensinava a miúdos e graúdos em lições sempre ansiadas. Ao fim da tarde, após o fecho do museu, Joel dava ainda um saltinho ao canil municipal onde, de forma voluntária, dava a ajuda possível na limpeza, tratamento e alimentação dos cães vadios que todos os dias ali chegavam com o olhar triste de quem sente findarem os seus dias de liberdade. Muitos amigos Joel ali possuía igualmente. Bastava a alguns cachorros mais espevitados sentirem-lhe o aproximar do cheiro, para logo desatarem em prantos e correrias só saciadas com uma festa mais prolongada. Já com a noite no horizonte, Joel despedia-se sempre com saudade dos seus fiéis amigos, seguindo caminho em direcção à doca onde repousava a sua pequena embarcação. Motor ligado, luzes acesas, painéis de controlo regulados e lá se fazia ele ao mar para o que desejava sempre ser uma boa pescaria. Em tempos, Joel chegara a ter uma paixão. Outra paixão, que não as que hoje lhe preenchem os dias. A de uma senhora, que com ele um dia se cruzou numa rua mais movimentada da cidade e que desde então lhe acelerava as batidas do coração de cada vez que a via ou nela pensava. Mas foi sol de pouca dura. A senhora - que por sinal era ainda de uma perfeita figura, mesmo apresentando a respeitável idade de 78 anos - foi forçada a vender a sua velha habitação e a rumar para longe, para mais perto dos seus filhos, que, assim, podiam tomar melhor conta dela. Um pequeno desgosto que Joel logo tratou de apagar com inúmeras actividades que pouco tempo lhe deixavam para pensar em si e nos seus sentimentos. Agora escrevia poesia, quando ainda assim se sentia traído pelos pensamentos que, raramente, lhe recordavam a idosa senhora. Quando faleceu, com 94 anos, Joel foi recordado com saudade por quantos haviam tido o prazer e o privilégio de com ele privar. Todos os seus alunos, da escola, das lições de guitarra clássica, de piano, do museu, quiseram marcar presença na sua despedida. E foi o mesmo rapaz - agora já homem feito e respeitado chefe de família - que um dia lhe ofereceu o bloco onde ele depositava os seus pensamentos, que lhe fez a última vontade em vida: a de ser cremado e as suas cinzas no mar espalhar, num entardecer soalheiro e calmo. Ao rapaz - agora homem - deixou-lhe o barco. O velho barco com que em cada dia se fazia ao mar e de lá trazia histórias sempre belas para contar. Joel tinha muitas profissões e em todas elas não se cansava de ensinar. Ensinar que a vida vai até onde nós a deixarmos ir, dando-lhe apenas ligeiros acertos no rumo a seguir. Que cada dia pode ser uma constante emoção, seja a apreciar uma bela tela, a ensinar uns acordes de música a uma criança sempre curiosa e desejosa de mais saber ou simplesmente a observar atentamente o que à nossa volta se passa.

O poder da palavra

por migalhas, em 03.06.05
As primeiras linhas de Junho, agora paridas do ventre das ideias, esvoaçam livres no papel que as acolhe, linha a linha, numa cumplicidade que relação alguma ousa imitar. Por fim libertas do seu longo cativeiro, da gaiola onde se detinham receosas do mundo, fazem-se à vida em todo o seu esplendor.
Como um puzzle, que se constrói peça a peça, também estas frases, mais do que um mero esboço, são agora uma realidade assente na formação de palavras, na conjugação não arbitrária de letras que, uma após outra, se empenham na forma e efeito do discurso escrito. Como um grito que nos abandona numa viagem apenas de ida para nos servir de alívio, mesmo que momentâneo, ou da mesma forma que a serena paz serve de epílogo à mais voraz das tempestades, a palavra é, indiscutivelmente, um purgante da alma. Uma força da natureza tão rebelde quanto mais trela lhe dermos. Pois que o crivo somos nós e é sabido como este pode ser apertado e estreito no momento da verdade. E porque a força da palavra é enorme e indomável, a ela é permitido perdurar no tempo, indiferente ao desfilar das gerações ou às mutações do mundo. Lado a lado, de braço dado com Cronos que, por muito injusto que possa ser, é a nós e só a nós, arquitectos dessa mesma palavra, que concede um prazo, estipula uma validade, num Dharma pré-definido a que somos alheios. Será esse nosso destino traçado, e para o qual não fomos nem sequer consultados, razão de alguma da nossa ira? Ou motivo de força extra, incentivo divino para espremermos o que nos foi concebido e desfrutar cada dia como se fosse o último? Seja qual for a razão, ou mesmo a nossa decisão, a palavra, essa, será nossa companheira a toda a hora e em cada acto. Como uma confissão a que sozinhos, ou num ombro amigo, nos permitimos, de forma a partilhar o que nos vai cá dentro. Pois é sabido que, não exteriorizado, o nosso eu mais profundo pode ser causa de caos ou desgraça pessoal. Pelo sim, pelo não, em caso de urgência, ou à falta do tal ombro conselheiro, o recurso à palavra pode aplacar a fúria, a desilusão, a incerteza, ou até conter alguma exaltação extrema. Pode ser o libertar de um pássaro há muito enclausurado ou o colocar de uma trela curta a um animal sempre habituado à liberdade plena. É o que nós quisermos que seja e está na ponta de uma caneta, de um lápis ou ao alcance de umas quantas teclas de um teclado de computador. Um caso típico em que, indiferentemente do meio, o fim será sempre o mesmo: desabafar por via da palavra.