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TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

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Gota a gota

por migalhas, em 28.12.04
Aquela torneira perseguia-me impiedosamente desde há uns meses a esta parte. Continuamente, ela insistia no ritmo ininterrupto com que deixava escapar gota após gota em direcção ao lavatório. Com tal força a fechara da última vez, que já nem conseguia abri-la sem o recurso ao alicate. Mas ainda assim, a fuga era visível e, mais desesperante do que isso, bem audível. Tal e qual a tortura que os nazis infligiam aos seus prisioneiros de guerra nas celas onde os abandonavam à sua sorte, aquele gotejar constante depressa iria contribuir de igual forma para a decadência da minha sanidade mental. Munido de uma completa caixa de ferramentas, onde nada parecia faltar, e de uma vontade de ferro em resolver um assunto que se prolongava há tempo demasiado, fiz-me ao inimigo, farto que estava das diversas tentativas feitas "a desenrascar" e que nada haviam conseguido. Primeiro com uma ligeira apertadela, depois com uma apertadela maior e, já quase em desespero, uma outra ainda maior. Seguiu-se a fase dos panos e dos trapos velhos como forma de absorverem a água que, de tanta, passou rapidamente a necessitar de um "up-grade" em forma de balde. Por fim, já nem o balde sustinha a cascata que se fazia notada por toda a casa, num som que ecoava já bem para além desta e que preenchia por completo a minha caixa craniana, 24 horas por dia, dia após dia. Alicates, chaves de parafusos, martelo, berbequim, de tudo fiz uso até conseguir estancar aquela fuga que parecia agora definitivamente obra do passado. Deitei-me nessa noite e pela primeira vez em muitos meses consegui ouvir outra coisa que não o gotejar constante e ritmado daquela velha torneira. O monstro parecia ter adormecido. Ao contrário de mim, que agora despertara para outros sons que já quase esquecera que existiam. Pude voltar a apreciar as entusiásticas discussões dos vizinhos de cima, o ranger das molas da cama e as respectivas manifestações sonoras de prazer emitidas pelos vizinhos do lado ou mesmo o chinfrim despropositado, mas constantemente repetido, pelos homens responsáveis pela recolha do lixo, que se faziam transportar num veículo que, a várias centenas de metros de distância, já se fazia claramente notado. Nessa noite, voltei a não conseguir pregar olho. Ou melhor, estava a começar a querer pegar no sono, quando a vizinha do lado deu início ao seu duche matinal. Seguiram-se-lhe os saltos altos da vizinha de cima a passearem pelo soalho de madeira, as crianças do terceiro esquerdo em gritaria pela escada abaixo, o cão do vizinho de baixo num ladrar continuado, em resumo, fui interrompido pela sonora alvorada do prédio onde habito. Senhor de umas olheiras que pareciam ter-se apossado de mim em definitivo, dirigi-me ao lavatório para passar um pouco de água no rosto. Tentei abrir a torneira e esta não colaborou. Ainda na véspera tinha ficado como nova... Dei um torção no manípulo com um pouco mais de força e, para algum espanto meu, fiquei com o mesmo na mão. Soltara-se do resto do corpo da torneira, que agora jorrava um jacto de água abundante pela sua parte superior. Tentativas de deter aquele curso de água foram algumas, mas todas sem resultados práticos. Corri à escada, onde no contador geral da água julgava cortar o mal pela raíz, mas também aqui as coisas correram pelo pior. Agora eram dois os manípulos que segurava nas mãos encharcadas de tanto contacto com a água. O monstro acordara e trouxera amigos. Telefonei para o piquete das urgências que num tempo recorde de três horas conseguiram dar com a minha morada. Claro que, quando lá chegaram, já eu substituíra as galochas pelo colchão de praia e o excesso de água caía em cascata pelas janelas em direcção à rua, agora também ela parcialmente inundada. Em breve corria um curso de água apreciável junto àquele prédio de habitação, numa radical transformação de cenário de todo impensável há algumas horas atrás. Esse mesmo curso de água - que entretanto crescera de caudal e era já considerado rio - viria a ser aproveitado para criar uma área de lazer com inúmeros espaços verdes adjacentes. Foram criadas margens artificiais com terra para ali propositadamente transportada e em ambas fora plantada relva e árvores em abundância, que cresceram viçosas graças à existência do elemento água que, por ali, nunca abundara. O prédio valorizou imenso e cada um dos respectivos apartamentos foi avaliado no dobro do que antes valia. O meu, em particular, passou a funcionar como fonte de origem dessa mesma água, de onde continuou a cair em cascata por ordem expressa do presidente da câmara. Aquilo que deveria ter sido uma simples avaria numa torneira já gasta pelo tempo, com a subsequente fuga de água de que quase sempre se revestem estes casos, tornou-se numa inédita e insólita obra pública de que a câmara foi a principal beneficiária. Em breve, os pequenos barcos a remos que de início faziam a travessia de uma margem para a outra, ou as simpáticas gaivotas que a câmara propositadamente comprara para o efeito, deram lugar a navios de grande porte que agora faziam daquele canal um atalho que poupava aos seus armadores não só tempo como muito e muito dinheiro. Em pouco tempo, a câmara local concorria ao prémio de Autarquia do Ano que, por unanimidade, arrecadou, em resultado desta grandiosa proeza de incalculável utilidade para toda a comunidade. Também eu não fui esquecido, tendo sido agraciado pelo senhor Presidente da República, em pessoa, com uma ordem distinta entregue apenas aos responsáveis por feitos cujas dimensões físicas e humanas estão para além do impensável. Com a indemnização que me foi paga por ter de abandonar o meu ex-apartamento - agora transformado em central hidroeléctrica - abandonei aquela cidade - a que fora recentemente promovida - e assentei arraiais a uns bons quatrocentos e tal quilómetros a sul da mesma. Comprei um apartamento em segunda mão, mesmo no centro desta simpática e pacata vila, e segui a minha vida, agora mais sossegado e longe da confusão que se gerara à minha volta sem que ninguém a tivesse chamado. Voltei a dormir as noites por inteiro - algo que não experimentava há já bastante tempo - e tudo parecia ter voltado à normalidade até que há umas noites atrás fui acordado por um som familiar. Um gotejar constante e ritmado anunciava uma pequena fuga de uma qualquer torneira a necessitar de urgente arranjo. A sensação de um "dejá vu" sonoro apossou-se da minha pessoa. Ainda tentei abstrair-me daquele som velho conhecido, som esse que nem a almofada fortemente comprimida contra os ouvidos conseguiu abafar. Já irritado, levantei-me e fui direito ao cantinho da despensa onde guardara a caixa das ferramentas. Desta vez não iria "desenrascar", mas sim resolver desde logo a situação. Afinal de contas, não deveria ser nada de muito complicado. Apenas o gotejar próprio de uma torneira já muito usada e gasta pelo tempo.

O Natal do velho amolador

por migalhas, em 22.12.04
Amolador há 42 anos, Fulgêncio visitava com frequência a pequena aldeia onde ainda possuía alguns, poucos, clientes. Os tempos eram outros e estes bem mais difíceis para uma profissão que caminhava a passos largos para a mais do que previsível extinção. O desaparecimento das típicas costureiras - que a ele recorriam regularmente para que lhes afiasse as respectivas tesouras - foi um duro golpe na esperança de Fulgêncio quanto ao futuro da única profissão que conhecera e que desde os 14 anos executava com todos os preceitos que seu pai lhe havia ensinado. Também ele se vira obrigado a acompanhar a evolução dos tempos e por isso hoje conduzia uma motorizada, na traseira da qual estava o seu sustento: o aparelho com o qual afiava tesouras e facas, a troco de uma irrisória quantia. Começara com um carrinho de mão, que deu depois lugar a uma bicicleta, e hoje é à força de motor que anuncia a sua presença junto das populações cada vez menos entusiasmadas e necessitadas dos seus serviços. À força de motor e do seu característico e muito antigo apito de oito vozes - tipo gaita - onde toca a melodia com que atrai os escassos clientes. Mas hoje já nem o bonito e exclusivo som proferido por este instrumento - também ele caído em desuso - parece querer atrair quem quer que seja. Por isso, não admira que seja um Fulgêncio de ar triste e conformado que percorre, já quase sem esperança, os locais onde antes era constantemente solicitado. E porque é cada vez menos o dinheiro que leva para casa ao fim de cada dia de trabalho, Fulgêncio vê-se obrigado a enfrentar diariamente as condições amosféricas que durante os meses de Inverno, e principalmente em Dezembro, se fazem sentir com toda a sua intensidade. Véspera de Natal. Fulgêncio tenta alcançar a velha aldeia, mas esta está agora isolada pela neve. Fulgêncio sabe que tem uma encomenda para a senhora Beatriz e que não a pode desiludir. Afinal de contas, ela é uma das suas mais antigas clientes. A motorizada, já cansada, dá indicações de também não poder mais e subitamente Fulgêncio vê-se perdido no meio de um intenso nevão, sem condições de se deslocar. O frio é intenso, a visibilidade nula e as forças começam a abandoná-lo, acabando por fechar as pálpebras em definitivo, num último gesto que anuncia a sua rendição. Por breves instantes, consegue ainda sonhar com uma casa em madeira, aquecida por uma lareira onde o fogo não pára de crepitar e onde a luz de mil velas acesas em seu redor lhe transmitem o conforto e o bem-estar que, verdadeiramente, nunca experimentou. Ouve vozes e distingue um vulto que se aproxima e lhe aconchega os lençóis. Depois adormece e assim permanece. Quanto tempo não sabe. Sabe apenas que acorda num local que não conhece. Numa casa toda ela em madeira, aquecida por uma lareira onde o fogo crepita furiosamente e onde mil velas se acendem à sua volta. Não sonhara. Sempre ali estivera e agora sabe na companhia de quem. O vulto, o tal vulto com que julgara sonhar, é alguém em quem há muito deixara de acreditar. Veste de vermelho, possui umas longas barbas brancas, é grande, forte e senhor de uma voz condizente. Vendo-o a despertar, o grande vulto chega-se perto e pergunta-lhe:
- Sente-se melhor?
- Sim, sinto. Mas o senhor é quem eu penso que é?
- Parece-me bem que sim.
- Mas eu nunca acreditei que a figura do Pai Natal existisse de verdade.
- E olhe que não é o único. Mas por vezes são as coisas em que já não acreditamos que nos salvam. Que dão um outro rumo às nossas vidas e muitas das vezes chegam mesmo a preenchê-la. Não é o primeiro a quem isso acontece e, seguramente, não será o último.
- Mas isto é incrível. E sempre viveu aqui, nesta floresta?
- Sempre vivi aqui - tocando com o indicador na testa de Fulgêncio - só que fui sendo esquecido e deitado para trás de outros pensamentos.
- Mas eu nunca acreditei...
- Isso não é verdade. Todos já foram criança e sonharam um dia com alguém que nesta mesma noite os presenteava com esperança. A si também já aconteceu. Foi há muito tempo, mas se fizer um esforço vai ver que se lembra.
- Talvez tenha razão...
- Eu sei que tenho. E agora que a sua esperança se esvanecia, era altura de nos voltarmos a encontrar. Já olhou para aquele canto?
Fulgêncio rodou a cabeça, olhou e espantado nem queria acreditar no que via. A sua velha motorizada dera agora lugar a um veículo - igualmente motorizado - mas que, de tão novo, cintilava em concorrência cerrada com as mil velas acesas que o rodeavam. O próprio aparelho de afiar - que ocupava a traseira do novo veículo - estava irreconhecível.
- Mas como é isto possível? Estarei a sonhar?
- Esteve durante muito tempo, é verdade. Mas agora chegou a hora de realizar esses seus sonhos antigos. E isto não é tudo.
Nisto, um pensamento inquietou Fulgêncio:
- A senhora Beatriz! Tinha uma encomenda para lhe entregar...
- E foi entregue. A tempo e horas, não se preocupe. Agora só tem de se preocupar com o trabalho que ela e todas as senhoras das aldeias das redondezas lhe vão dar, a partir do momento em que esteja recuperado.
- Trabalho? Mas que trabalho?
- De amolador, ora! Não é o que você faz?
- Sim, mas já ninguém procura os meus serviços...
- Procurava. Pois a partir de agora, todas as senhoras vão estar permanentemente ocupadas com a confecção de todo o tipo de roupa e vestuário que as crianças de todo o mundo vão receber e que eu próprio lhes vou entregar. E você vai ser o amolador de serviço. Que lhe parece?
- Estou sem palavras!
- E forças? Ainda está sem forças?
- Não, já me sinto muito melhor.
- Está então pronto para começar?
- Sim, acho que sim.
- Óptimo.
O que se seguiu, é fácil de imaginar. A vida de Fulgêncio deu uma grande volta e desde então nunca mais teve mãos a medir, tal era a quantidade de trabalho que constantemente lhe era solicitado. E tudo porque voltou a acreditar. Acreditar que ainda era possível.

Essa é que é essa!

por migalhas, em 22.12.04
"A lógica e a análise excessiva imobilizam e esterilizam as ideias. É como o amor, quanto mais o analisamos mais rapidamente ele desaparece".

Bill Bernbach

Onde é que está a dúvida?

por migalhas, em 21.12.04
O CASO DA TRINTONA BOA
Por Miguel Teixeira

Aquela trintona era realmente boa. Disso não havia a mais pequena dúvida. Mas daí a transformar isso num caso, também me parece algo exagerado.




O MISTÉRIO DA TRINTONA BOA
Por Miguel Teixeira

Aquela trintona era realmente boa. Um avião, como é costume dizer-se. Mas também, que mistério é que isso tem? É boa e pronto. Ponto final.




A TRINTONA QUE ERA MESMO BOA
Por Miguel Teixeira

Aquela trintona era realmente boa. Era? Porquê? Já não é? Já não é o quê? Trintona ou boa? Terá casado aos quinze?

Ainda em dificuldades

por migalhas, em 21.12.04
Vejam lá vocês bem o buraco onde eu me fui meter.

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Em dificuldades...

por migalhas, em 21.12.04
Para que todos vejam que eu não menti em relação ao grau de dificuldade do passeio de Natal deste ano.

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Almoço de Natal TT 2004

por migalhas, em 21.12.04
Foi no último Domingo, 19 de Dezembro, que teve lugar o tradicional almoço de Natal do Grupo Gimnodesportivo e Recreativo de Quatro Rodas Sujas de Lama, de seu nome Eskapadelas. Desta feita organizado pela dupla Jesus/João Pedro e com partida de Palmela e chegada ao ventoso Cabo Espichel, o mesmo foi abrilhantado por um passeio de dificuldade muito elevada, da qual eu mesmo dei conta "in loco". Estávamos ainda em período de aquecimento (3 míseros quilómetros percorridos!) e já eu dava nas vistas, mergulhando fundo num buraco que, visto de fora, nem parecia assim tão fundo. Claro que, com a lama que este possuía e que o cobria parcialmente, a par dos meus pneus de todo impróprios para semelhante lamaçal, nem um metro percorri até me sentir atascado e completamente inclinado num ângulo que, na altura, me pareceu bastante angustiante. Depressa me arrependia de ter optado pela "alternativa radical" (felizmente a única de todo o road-book), principalmente quando, paralelo a esta meia dúzia de metros acidentados, passava um caminho plano e sem ponta de lama, a que até um Mazda Cabrio se fazia sem qualquer tipo de dificuldade. Nada que não tenha sido prontamente solucionado através da sempre pronta colaboração de todos os homens presentes (sim, porque as "gajas" riem e tiram fotos) e de dois todo-o-terreno de fibra que, com a ajuda de cintas e afins, em pouco tempo dali arrastaram aquelas duas toneladas e meia de veículo. E pronto, poderia dizer que a emoção acabara logo imediatamente após este incidente que, felizmente, não provocou danos. O resto do percurso foi pacífico e sem mais ninguém a querer dar nas vistas. Depois veio uma curta paragem em Azeitão - para a degustação de umas deliciosas e típicas tortas - e onde fomos recebidos pela Filarmónica local que, debaixo de algum frio, tocou uns quantos temas de Natal nossos conhecidos. Mais meia horita de percurso e dávamos entrada no Pantanal. Não, não se tratava de mais uma parte do percurso intransitável, mas sim do Restaurante onde fomos muito bem servidos e igualmente recebidos ao som de música. Só que aqui a música foi realmente outra. Um senhor na casa dos sessenta e tais, acompanhado apenas de uma Ibanez - cujo modelo devia ter perto da idade dele - e de uma caixinha de ritmos, resolveu brindar-nos com um reportório exclusivamente de música brasileira, mas a que teve a infeliz ideia de adicionar uma letal combinação de pronúncia tipicamente portuguesa com uma gritante e contínua desafinação vocal que a todos tocou de perto. Eu diria mesmo de muito perto, pois ficámos localizados numa mesa paredes-meias com as colunas de som de onde o senhor debitava as suas repetidas desafinações, sem que disso sequer se apercebesse. Resultado? Vimo-nos e desejámo-nos para nos fazermos entender, o que levou a generalidade dos presentes a fazer uso do único recurso possível face às circunstâncias: a alta voz. Única forma de manter alguma comunicação entre os presentes, de todo útil num almoço em que colocar a conversa em dia era prioridade. Quanto ao rodízio, estava excelente! O meu peixinho era de uma frescura que saltava à vista e rematado por um quindim divinal, caiu que nem ginjas! Voltámos à estrada, então já sob intensa chuva e nevoeiro, e terminámos o passeio com uma interessante visita guiada ao farol do Cabo Espichel. Desta curiosa visita, fiquei a saber que o dito farol - complexo auxiliar de navegação, quer marítima, quer aérea, e cujo foco de luz atinge uma distância máxima de 43 quilómetros -, pode, em caso de falha eléctrica e do respectivo gerador, ser accionado por um, imaginem, Petromax! Não há como nós, portugueses, para desenrascar! Seguiram-se as despedidas, os votos de boas festas e a obrigatória limpeza das partes baixas do veículo, onde a lama já se transformara em barro que, muito a custo, lá acabou por sair, ainda assim, em forma de blocos bem compactos. Foi o pretexto para oferecer a prenda de Natal ao meu competente Discovery: um banho completo, algo que não via desde o último passeio de Natal. Venha agora o próximo, com a promessa, desde já feita, de que não servirá de veículo à minha necessidade incontrolável de protagonismo.

O prédio que não queria crescer

por migalhas, em 21.12.04
Aquela fieira de prédios altos e majestosos, quase todos a tocarem os céus, só destoava de todas as outras fieiras de prédios igualmente altos e majestosos por uma pequena razão. Quase imperceptível no meio dos seus irmãos muito mais altos, um pequeno prédio de apenas dois andares havia resistido à tentação de crescer. De acompanhar os seus pares naquela louca e desenfreada corrida às alturas. Mantivera a sua baixa estatura - equivalente aos seus dois únicos pisos - numa pose quase insignificante face aos seus vizinhos gigantes. Insignificante, mas assumida desde a primeira hora. De tal forma se mantivera fiel a esta sua ideia - suportada por uma intransigente teimosia - que já ninguém sequer ousava mencionar o facto. Passara a ser natural para todos os outros, coabitar com uma "amostra de prédio" como ainda lhe chegaram a chamar. Designações a que não deu qualquer importância, convencido que estava dos seus propósitos. Nada o demovera antes da mesma forma que nada o iria demover agora. Passados os piores momentos - aqueles iniciais em que a sua teimosia muitas discussões gerou - todos viviam agora em harmonia perfeita e plenamente convictos de que assim seria para sempre. Havia no entanto um prédio, a alguns quarteirões de distância, que ainda hoje não se conformava com esta situação, a seu ver, ridícula. Por que razão aquele prédio se recusara a acompanhar o crescimento dos demais? Que ideia estaria na base daquela tão insólita decisão? Não querendo dar parte fraca - mas remoendo aquele assunto todos os dias, durante anos a fio - o inconformado prédio de duzentos e trinta e três andares lá se decidiu a questionar o parente que ele próprio considerava muito afastado.
- Ouve lá. Tu, ó pequenote.
- Estás a falar comigo?
- Claro que estou a falar contigo. Vês aqui mais algum prédio a que possa chamar pequenote? - perguntava o enorme arranha-céus, agora todo encurvado como única forma de se chegar mais perto.
- Não gosto que me chamem nomes associados ao meu tamanho.
- Tudo bem, é justo. Não volto a fazê-lo. Mas há uma coisa que me tem dado a volta à telha e que gostava de esclarecer contigo.
- Muito bem, fala.
- Tem a ver com a tua altura.
- E o que é que tem a minha altura? - questionou em resposta, preparando-se para argumentar o que tantas vezes já repetira a outros curiosos como ele.
- É que é muito baixa.
- Pois é. E isso incomoda-te?
- Não, não me incomoda. Mas faz-me confusão.
- Faz-te confusão?
- Sim, faz-me confusão porque é que tu não queres ser alto como todos nós. Tu nunca tocaste os céus, nunca experimentaste a sensação única que é ver tudo lá de cima. É uma vista espantosa que tu aqui de baixo nem imaginas.
- Mas quem é que te disse a ti que a vista que tenho aqui de baixo não é tanto ou mesmo mais espantosa do que a que tu tens lá de cima?
- Essa agora! Como é que é isso possível?
- Eu digo-te. Vocês cresceram, uns mais do que os outros, mas sempre com o objectivo de se afastarem cá de baixo. Tornaram-se altivos, frios, distantes e convencidos de que a vossa estatura era o que mais interessava. Mas enganam-se. Todos. O melhor da cidade está aqui em baixo, nas ruas. O melhor da cidade são as pessoas e elas movem-se aqui, a dois passos de mim. Passeiam, correm, zangam-se, convivem, riem, choram, falam, tudo aqui, bem pertinho de mim. Sente-se o calor humano cá em baixo. E isso sim, é o que verdadeiramente importa. Por um acaso vocês lá de cima têm essa visão?
- Das pessoas? Não... lá de cima elas são minúsculas. Quase tanto como tu.
- Percebes agora porque é que eu nunca quis crescer como todos vocês?
- Acho que sim.
- Como é que eu assistia a todo este espectáculo humano, a toda esta vida que pulsa a cada segundo na cidade, se estivesse lá no alto?
- Tens razão. Nunca tinha pensado nisso. Obrigado por me teres feito ver essa tua visão.
E com este esclarecimento, o alto e majestoso prédio de muitos e muitos andares regressou à sua posição vertical, compreendendo agora as razões que haviam levado aquele pequeno prédio a recusar-se a crescer. A recusar-se a ser mais um arranha-céus vaidoso e apenas preocupado em tocar o céu, esquecendo que o mais importante, e única razão da sua existência, vive cá em baixo, com os pés bem assentes na terra.

Pedaços de mim - parte dois

por migalhas, em 16.12.04
Continuação...

Um homem que nunca necessitara da ajuda de ninguém, que sempre se safara sozinho, ver-se agora numa situação destas. E foi com este pensamento em mente, que assisti à partida de um dos meus olhos da respectiva órbita que até então ocupara. Também ele esgotara o tempo de permanência junto do meu corpo. Rolou pelo chão em madeira de pinho flutuante e só viu o seu avanço travado pela pata do Jerónimo, o nosso gato de estimação. Julgando tratar-se de uma qualquer bola com que adora brincar, o estúpido do gato pôs-se a dar patadas no meu precioso olho e a correr atrás dele em insistentes ofensivas a que o pobre indefeso não conseguia pôr cobro. Não passou muito tempo até que uma nova bola se juntasse à brincadeira. Eram agora dois os olhos que sucumbiam aos maus tratos proporcionados por um gato que, a ver pelo entusiasmo com que deles fazia uso, aparentava estar muito entretido com aquelas recentes novidades. De orgulho ferido e tonto de tanto ver a rodopiar - devido às voltas e reviravoltas que os meus ex-órgãos de visão sofriam nas patas daquele estúpido animal felpudo -, percebi e dei então valor à impotência que por vezes se sente face a determinadas situações. Tivesse eu pelo menos um braço à mão e já aquele gato, que eu sempre detestara, tinha levado com um sapato em cheio no focinho. Mas não, tinha agora de sujeitar-me às suas parvoeiras, como que em paga de tudo o que eu lhe havia feito até então. Estava claramente a pagar pelos meus pecados. Disso não restavam dúvidas. Mas nisto, a porta da rua abriu-se e uma voz conhecida soou, chamando pelo monte de pêlo. Prevendo que algo de comestível poderia acompanhar aquele chamamento, lá foi ele ter com a empregada da limpeza desistindo dos olhos que até então lhe haviam servido de distracção. Agora sim, ia sofrer a maior das humilhações: aparecer daquela forma perante a mulher a dias. Mal virou a esquina em direcção ao corredor onde se encontravam os dois terços de corpo que ainda me restavam - a cabeça e o respectivo tronco, onde esta se encontrava ainda agarrada - pisou um dos olhos que logo se esborrachou sob a sola do seu sapato, produzindo um som horrível só possível de reproduzir na presença... de um olho acabado de esborrachar. Assim que me viu naquela figura, esbugalhou os olhos, gritou, levou as mãos à boca e saiu em corrida em direcção ao meu escritório. Ouvia-a a remexer numa das gavetas da minha escrivaninha e tão depressa como se ausentara, regressou com um tubo de cola UHU nas mãos. Com uma mestria que até então lhe desconhecia, foi juntando as partes que se haviam libertado do meu corpo e colou-as, uma a uma, ao tronco onde pertenciam, com a preciosa ajuda da cola. Terminado o trabalho de recuperação, colocou-me à janela para secar. Nem dez minutos passaram até me sentir como novo. Voltava a ser o homem completo que sempre fora. Ou quase. Pois no lugar do olho esborrachado, havia sido colocada uma esfera de vidro cuja falta pouco ou nada se iria notar no enorme lustre da sala. E tudo graças à Zarzuela, a nossa empregada mexicana. Em breve estávamos na cama a copular e a repetir os feitos que tantas vezes havíamos protagonizado durante as suas horas de expediente. Só mais tarde, depois de ela se ter ido embora, é que me apercebi da falta do outro membro, o tal que não sei se entra para a contabilidade dos que havia perdido e recuperado nesse mesmo dia. Não dei importância. Sabia que era obra da Zarzuela que, durante o tempo em que me ausentara num curto dormitar, mo havia tirado e levado consigo. Queria a exclusividade do mesmo, como tantas vezes mo pedira. Não me preocupei muito. Se era isso que ela queria, tudo bem. De qualquer das formas também já não lhe dava uso em casa, por isso não havia grande mal em levá-lo com ela. Isto, claro está, desde que volte a trazê-lo de cada vez que venha fazer as limpezas. Pois que da cola, trato eu.

FIM

Pedaços de mim - parte um

por migalhas, em 15.12.04
Findo o banho matinal, tudo parecia envolto na normalidade de que sempre se reveste este momento diário. Puxei da toalha que repousava no respectivo toalheiro e coloquei-a sobre os ombros, secando-me de seguida. Foi então que, ao preparar-me para abandonar o espaço da banheira, assisti estupefacto à insólita separação do meu braço esquerdo do corpo a que sempre pertencera. Pelo menos desde que tenho noção do meu corpo como um todo, constituído por uma cabeça, tronco e alguns membros, dos quais o tal braço que agora se tornara autónomo. Não totalmente, pois não apresentava vida própria. Apenas se separara do corpo e ali repousava a meus pés como uma mera peça isolada. Sem reacção possível, fiquei a olhá-lo fixamente e a pensar que raio havia proporcionado semelhante coisa. Seria do shampoo? Mas para isso teria caído a cabeça e não um dos braços. Seria do gel de banho? Olhei para o rótulo e pude comprovar a quantidade exagerada de químicos que são adicionados ao que supostamente deveria ser apenas um líquido de limpeza com um certo e determinado aroma. Até que poderia ser do gel de banho, mas já o usara tantas vezes. Por que raio é que só agora iria causar este efeito? E seria de pensar que atrás deste membro outros se lhe seguiriam e começariam a cair que nem tordos? Tremi. Não muito, pois a trepidação poderia eventualmente acelerar este estranho processo de queda e isso eu não queria. Voltei a tremer e então descortinei que o fazia não tanto pela situação em si, mas pelo frio de estar ainda como viera ao mundo. Dirigi o braço que me restava na direcção da roupa e foi quando este também caiu a meus pés, tal e qual um fruto maduro cai do ramo onde cresceu. Era agora um homem desmembrado e a única imagem que me ocorreu foi a dos homens de acção que o meu filho frequentemente mutilava por puro gozo. Nessa altura percebi a falta que fazem os membros superiores. Os dois braços ali repousavam inertes, um dentro e outro fora da banheira, e aí sim, comecei a ficar nervoso. A situação começava a tomar contornos preocupantes e disso me apercebi ainda mais quando me lembrei de que estava sozinho em casa. Mesmo que quisesse ajuda, não haveria ninguém para me socorrer. Fiz uso dos dentes e depois de grandes malabarismos lá consegui vestir as calças. Mas tal e qual uma contaminação que se propaga rápida e de forma fulminante, depressa senti que perdera um outro membro, desta vez uma das pernas. À medida que saltitava sobre a única perna de que agora era possuidor, a outra escorregava por dentro das calças para em breve ficar pelo caminho, juntando-se assim aos restantes membros que, como ela, me haviam deixado sem aviso prévio. O objectivo agora era o de conseguir alcançar o telefone e contactar a minha mulher para a avisar da situação. Uma vez fora da casa de banho, tentei chegar ao corredor mas sem sucesso. E isto porque o último dos meus membros - se exceptuarmos aquele outro que assim é tratado mas que não sei se entra para a contabilidade dos seus pares - se juntou à maioria silenciosa e resolveu igualmente deixar-me. Tê-los-ia eu tratado assim tão mal durante o tempo em que convivemos como um todo ao ponto de agora me deixarem desta forma? Afinal de contas eram carne da minha carne e sempre tentara dar-lhes apenas o melhor. Nem a minha mulher - que tratava bem pior do que a eles - me havia deixado. Com óbvias dificuldades lá ia arrastando o que restava do meu corpo, neste caso a cabeça e o tronco, mas sentia que era um esforço escusado. Não havia como sair do sítio onde ficara sem a última perna e por muito que tentasse não iria muito mais longe. Eu que era uma pessoa completa, como muita gente gostava de frisar, via-me agora espalhado pela casa em vários pedaços. Que humilhação!

Continua...

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