Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

100Nexus

TUDO É ILUSÃO, DESDE O QUE PENSAMOS QUE PODEMOS AO QUE JULGAMOS QUE TEMOS.

facebook

O país do provisório

por migalhas, em 31.08.04
Vivemos numa réplica do País das Maravilhas, onde tudo aquilo que se constrói ou ergue de forma meramente provisória, tende a prolongar o seu tempo bem para além do que seria suposto. Exemplos não faltam e de norte a sul de Portugal somos confrontados com situações que há muito superaram o provisório para passarem definitivamente a... definitivas. Logo aqui, na capital, temos o caso do viaduto que liga Alcântara Terra a Alcântara Mar. Uma obra projectada de forma a provisoriamente resolver um problema que na época se colocava na ligação daquelas duas zonas e que passados - já nem sei quantos - anos, se mantém por ali, firme e hirto. Mais à frente, a caminho do Cais do Sodré, surge uma outra ligação aérea, e de novo a conectar a zona Mar com a Terra, esta em direcção ao início da Infante Santo. Mas não é só Lisboa que nos presenteia diariamente - e de há muitos anos a esta parte - com estes exemplos que, de simples remédios, passaram já a ser a cura. Em Tavira, por exemplo, um outro caso passa já despercebido a quantos por lá se movimentam. Este remonta igualmente há uns aninhos atrás, aquando das terríveis cheias que abalaram a região e que quase arrasaram a antiga ponte romana, invalidando a circulação automóvel sobre a mesma. Em risco ficou, na época, o contacto entre as duas margens do Gilão. Chamado de pronto a intervir, o exército ergueu uma ponte de campanha que, provisoriamente, atenuou os danos causados à população local. Hoje, é essa mesma ponte que mantém unidas as duas margens e não se prevê que a situação sofre quaisquer alterações. O que me dá ideia é que as soluções provisórias encontradas pelos nossos "cérebros"; são de tal modo válidas, funcionais e duradouras, que antes mesmo de serem provisórias já lhes está destinado o estatuto de definitivas. E não é só ao nível das obras públicas. A coisa funciona de tal modo bem e de forma tão abrangente, que até ao nível da governação passou a ser aplicada. Vejam-se os casos do primeiro, segundo (...), décimo primeiro, décimo segundo (...) governos, todos eles... provisórios. Não vêem a ligação? O que é que muda quando passam a definitivos? É isso mesmo, nada.

E se a vida tivesse banda sonora?

por migalhas, em 30.08.04
Todos nós já partilhámos a sensação de visionar um filme numa sala de cinema ou em casa e de nos deixarmos enredar na sua banda sonora original. Muitas das vezes parece que não existe, que não está lá, mas a sua importância é fulcral. Para cada cena, para cada situação que o realizador pretende transmitir. E se duvidam, tirem o som de um qualquer filme e apreciem. Perde toda a graça, certo? É essa a grande função da música em qualquer filme. Complementar com sons e com temas especificamente compostos para o efeito as imagens que correm a 33 frames por segundo no ecrã ou na tela que temos diante de nós. E quase sempre o resultado é brilhante. De tal forma o é, que muitas são as bandas sonoras originais que vendem tanto ou mais que os próprios filmes a que dizem respeito. Só por aqui se vê a importância e o impacto da música. Feita esta introdução, proponho agora um desafio. Imaginem a nossa vida, o nosso dia-a-dia, mas com banda sonora de fundo. Como nos filmes. Já imaginaram, cada acção protagonizada no nosso quotidiano ser devidamente coadjuvada por um tema musical específico? Imaginem aquele primeiro encontro com a rapariga que temos debaixo de olho há meses ao som de um tema romântico. Ou aquele desafio de futebol crucial onde temos de mostrar todo o nosso potencial ao som de um tema vibrante e cheio de um ritmo frenético. Ou uma manhã desperdiçada numa interminável fila num qualquer balcão de atendimento da função pública ao som de um tema pesado e onde a ira do vocalista quase nos faz arrasar por completo aquele local desesperante. Era realmente fantástico – e sem precedentes – se alguém conseguisse tornar a nossa vida bem mais interessante, bem mais motivante, com a simples adição de uma banda sonora de fundo. Era como se andássemos constantemente de headphones a ouvir apenas os temas de que gostamos e que melhor se adaptariam a cada situação. O mundo seria muita mais personalizado e cada um andaria bem mais entusiasmado com as suas tarefas. Senão acreditam, experimentem pôr uma musiquinha quando se propõem a desempenhar uma qualquer tarefa. Vão ver como as coisas correm muito melhor, ao ponto de irmos buscar forças onde nem julgávamos que elas existissem. É o poder persuasivo da música. Uma arte com milhares, senão milhões, de anos de existência. Para os mais cépticos, proponho-lhes que acreditem em mim. O resultado pode ser deveras surpreendente. Acreditem.

O drama dos vegetarianos

por migalhas, em 15.08.04
Hora de almoço. Entramos num café, num bar, num restaurante e perguntamos que alternativas existem que não contemplem a carne. Não sei se movidas pela vontade de agradar, se pela ignorância sobre o que acabei de perguntar, as criaturas que se fixam por trás do balcão atingem-me com um role de respostas onde aquilo que não falta é precisamente... a carne! Ele é o folhado de salsicha, a empada de galinha, a coxinha de frango ou aquela “quiche” de legumes e fiambre. Relembradas de que a carne era o elemento “tabu” da questão, as simpáticas criaturas escudam-se na alternativa do folhado misto ou dos croquetes “que são muito bons”! Estarei eu a falar um idioma assim tão complicado de assimilar? Ou será que as pessoas, pura e simplemente, ainda não interiorizaram o conceito de que, hoje e cada vez mais, a tendência aponta para um alimentação onde o elemento carne tende a desaparecer? Bem sei que a oferta continua a dar prioridade a esse elemento cada vez mais em desuso em grande parte dos países do norte da Europa. Atrasados, como sempre, em relação ao que se passa lá fora, é de querer que, mais dia menos dia, as coisas por cá se pautem pelos parâmetros do resto do globo. Porque se há coisas que vale a pena “importar”, esta é, seguramente, uma delas. Resta a esperança, e a força que o cada vez maior número de seguidores desta nova tendência possa ter, para que o estado das coisas vá gradualmente mudando. Mais que não seja para que, aqui e ali, se vá podendo deitar o dente a um folhado ou a uma “quiche” capaz de resistir ao peso da carne e cujo recheio não vá além dos saudáveis legumes. Em vez de uma dor de cabeça, cada hora de almoço seria para os vegetarianos, assim como para os demais, o momento de dar de comer às suas necessidades. Por muito verdes que estas possam ser aos olhos dos que ainda fazem da carne o seu “combustível” diário.

Tempo de ser eu

por migalhas, em 15.08.04
Vive em mim um grito mudo
Que a soltar-se acordaria o mundo
Uma dor continuada comprime o meu peito
Quebra-me a vontade, sinto-me sufocar

Se subisse à mais alta montanha
E perto do céu me confessasse
Seria eu merecedor de perdão?
Ou para sempre viveria preso a essa ilusão?

Quero soltar-me, quebrar os elos
Que me mantêm acorrentado a este meu fado
As forças faltam-me, a mente esmorece
E abandonado ao meu destino
Sinto-me perdido, nada acontece

Àvida de surpresas
A vida encarrega-se de as proporcionar
São muitos os golpes de teatro
Que durante este percurso temos de protagonizar

Cada cena, cada acto
Não tem direito a ensaio
Subimos ao palco e improvisamos
Na esperança de que o desenlace final
Seja aquele que tanto desejamos

É isto a que chamam vida?
É esta a missão que nos está reservada?
Então não quero, recuso
Escolho fugir, subo a parada
Porque se é para ser reprimido, oprimido
que o seja, sim
Mas sem sair ferido

Largo tudo, corro veloz contra o vento
Nada me pode parar agora
que sei qual é o meu destino, aquele que anseio num abraço
e que já não me deixa separar daquilo que faço

era bom, não era?
Poder rasgar o peito e cá para fora soltar
Tudo o que invalida que sejamos realmente nós.

Não adianta chorar
Nem sequer nisso pensar
Ser forte é o que nos resta ser
E levar da vida apenas o melhor
Isso ninguém me pode negar
Isso ninguém me vai tirar.

Todos temos um sonho

por migalhas, em 15.08.04
Todos temos um sonho
Que é belo porque tem de o ser
Porque é forte e não custa ter
Porque sabemos que nunca o iremos viver

Todos temos um sonho
Um sonho de querer, de poder ter
De alcançar limites que não nos é permitido sequer ver
Todos temos um sonho
Mas esse é o sonho onde eu nunca me irei rever

Valerá então a pena sonhar?
Desejar querer, ter, ser?
Para além desta vida algo mais conceber?
Sim, vale a pena
Porque sonhar, mesmo sem poder lá chegar
É permitir-mo-nos soltar
É podermos ambicionar
A um dia para trás olhar e dizer:
Eu estive lá e nunca me irei arrepender.

Voltar a ser

por migalhas, em 11.08.04
E se num dia igual a tantos outros
do meio da multidão atarefada e ausente
alguém te estendesse a mão, só porque sim
só porque era a hora de te encontrar

e se quando menos esperasses
se quando tudo parecesse ter o seu curso já definido
tudo se invertesse e te sentisses de novo
como saído do limbo que te consumia
e no qual habitavas sem questionar

e se tudo isso se passasse sem que nada o fizesse prever?
Sem que ninguém pudesse entender?
Seria bom, seria mau, ou apenas seria o que teria de ser?

Não busco respostas
porque se tornam impossíveis as perguntas.
Não pretendo saber ou sequer perceber.
Apenas aproveitar para viver e por momentos voltar a ser.

O poder da iniciativa

por migalhas, em 09.08.04
Estive este fim-de-semana numa praia do litoral alentejano onde pude assistir a uma iniciativa que teve tanto de interessante, como de didáctica. Mas vou começar pelo princípio. Estava eu na esplanada – agradavelmente virada para o mar - a tomar uma refrescante cerveja, quando deparo com um miúdo na casa dos oito, nove anos, que dedicava o seu tempo a recolher todo o lixo com que se cruzava. Numa mão segurava um saco em papel e neste depositava todo o tipo de detritos que, infelizmente, outras pessoas menos dotadas do tão urgente civismo, anteriormente haviam deixado esquecido no areal, nas dunas, no chão. Prontifiquei-me a enaltecer aquela sua atitude, que ganhava ainda mais mérito por provir precisamente de um simples petiz. Tão novinho e já preocupado com as polémicas questões ambientais. Que belo exemplo ele estaria a dar aos mais velhos, pensei. E não sei se movidas pelo embaraço que aquela criança lhes provocou, a verdade é que nem cinco minutos passaram quando reparo em duas senhoras que, tal e qual o miúdo, recolhiam do areal todo o tipo de despojos que nele repousavam. E mais. A acompanhar toda a dedicação e empenho que colocavam nesta causa, estavam os mais variados comentários que tinham por alvo os responsáveis pela falta de higiene daquele que é um espaço público por excelência e que, como tal, se quer limpo. A minha alma pasmou! Seria do sol? Estaria este a provocar insolações a torto e a direito numa população que sempre se pautou pela despreocupação neste particular do asseio? Mas nem sol havia, pelo que não poderia ser dali. Propus-me a investigar. Este nosso povinho não costuma dar ponto sem nó, pelo que a iniciativa não deveria ser isenta de um proveito para estes empenhados membros. Guiado pelo alvoroço que se ouvia a alguma distância do local onde me encontrava, desloquei-me às traseiras de um dos bares de praia que por ali proliferam e deparei com a causa de toda aquela actividade. Uma marca de produtos farmacêuticos havia escolhido aquela praia para se anunciar e fazia-o através de uma iniciativa que implicava a colaboração da população ali presente. A mecânica era simples. Em troca de uma pequena amostra do medicamento em causa, a população só tinha de entregar um saco de papel - que lhes era igualmente fornecido pelas assistentes - cheio com todo o lixo que pudessem recolher nas redondezas. Foi então que percebi a razão de toda aquela azáfama. Afinal as pessoas não haviam mudado. Nada disso. O que as movia era aquilo que sempre as faz mover: o receber algo em troca. Nem que seja uma amostra de um mero medicamento. Nessa altura descansei. Afinal tudo estava como sempre esteve. Ninguém havia dedicado uns minutos do seu precioso tempo de praia para se preocupar em mantê-la um pouco mais apresentável. A louvável iniciativa não partira da populaça, mas de uma marca que dava algo de palpável em troca. Claro, pensei. Onde é que eu estava com a cabeça? Ousar pensar que alguém se dedicava assim, por iniciativa própria, a limpar as nossas praias. Que estupidez a minha! E para ganhar o quê? Um ambiente mais agradável, locais mais cuidados, zonas mais atraentes? Nã! Isso ao pé de uma amostra de um determinado produto de nada vale. Sosseguei. Afinal as questões ambientais ainda não preocupam os portugueses a esse ponto. Afinal vamos continuar a afundar-nos na típica falta de civismo ou na despreocupação e falta de respeito pelo espaço que é de todos nós. Afinal Portugal não mudou naquele dia, naquela praia. Realmente, onde é que eu estava com a cabeça?

"Sair e voltar a entrar"

por migalhas, em 04.08.04
Tenho vindo a aperceber-me nos últimos tempos, que o conceito informático de "sair e voltar a entrar" se tem apoderado da generalidade das áreas da nossa sociedade. Ele é nos automóveis, nos ares condicionados, nas impressoras, nos telemóveis, nos restaurantes e até nos transportes públicos. Em qualquer situação por que hoje se passe e em que as coisas não corram de feição, não há nada melhor do que "sair e voltar a entrar" - que pode declinar num "desligar e voltar a ligar" - para que tudo se componha. E se falei dos restaurantes, é porque é de todo comum chegar àquele restaurante de que tanto gostamos e depararmos com o mesmo lotado. Nesse caso, também vale a pena sair e passadas umas horas voltar a entrar. Não só beneficiamos de um ambiente mais sossegado, como, inclusive, podemos escolher aquela mesa por que já ganhámos alguma afeição. Ou mesmo nos transportes públicos. Depois de mais de 30 minutos à espera por um determinado autocarro, torna-se difícil entrar naquele que chega tal e qual uma lata, onde as sardinhas, perdão, as pessoas, se acotovelam para demarcarem o seu exíguo espaço. Mais um caso em que basta repetir a fórmula mágica: sair e voltar entrar, desta feita no que vem 2 minutos imediatamente a seguir. Os efeitos são por demais surpreendentes! Há espaço com fartura e da mesma forma que no restaurante, também aqui dá direito a escolher o lugar da nossa preferência. De tal forma esta perspectiva se encontra generalizada, que inclusive ao nível sexual ela é válida. Quantos de nós não passamos diariamente por situações do foro mais íntimo em que a solução passa, inevitavelmente, por "sair e voltar a entrar", "sair e voltar a entrar", "sair e voltar a entrar"... enfim, até à exaustão! Se alguém tiver dúvidas que assim é, que experimente. Vão ver que vai tudo dar a essa milagrosa solução, em boa hora providenciada pela comunidade informática. Mas se esta se tem espraiado por outras áreas da nossa sociedade - e com algum sucesso, diga-se - também não é menos verdade que tem vindo a perder força na sua área de origem. Pois no que respeita aos computadores, vai sendo cada vez menos uma solução digna de resultados válidos, para grande desespero de todos aqueles que com eles lidam e de que deles dependem para executar as suas tarefas diárias. Se calhar o problema está na forma como se processa a saída e a respectiva entrada. Sempre ouvi dizer que, com jeitinho, a coisa vai. Vamos nessa?

Finalmente é Agosto!

por migalhas, em 02.08.04
Finalmente é Agosto! Ainda me lembro de quando esta era uma expressão que correspondia a um alívio real para quem estoicamente optava por ficar. Poderei mesmo dizer, que ainda sou do tempo em que, com a chegada do mês de Agosto, chegava igualmente um visível desanuviamento do tráfego automóvel no interior da cidade e nas vias que lhe davam acesso, bem como uma maior facilidade em conseguir estacionamento. O êxodo quase geral que noutras épocas se fazia sentir, e que transformava Lisboa numa verdadeira cidade fantasma, faziam suspirar de alívio toda aquela “posta restante” que via este como o período ideal para sossegadamente ficar a trabalhar. Mas esses tempos já lá vão. Assim como acabaram as vacas gordas, também de à uns anos a esta parte é mínima a diferença sentida do mês de Agosto para os restantes meses do ano. O trânsito sofre ligeiras melhorias, é verdade, a circulação automóvel idem, mas nada de verdadeiramente significativo. O número de pessoas é que, decididamente, parece não sofrer decréscimo algum nos dias que correm. E não é por as pessoas deixarem de tirar férias em Agosto. O problema está em que aqueles milhares que antes “migravam” em massa durante 30 dias para o sul de Portugal, hoje permanecem relativamente perto da sua área de residência de todo o ano. Frequentam as praias, os bares, as estradas, mas as mesmas que todos os outros que ficaram a trabalhar também frequentam. E como se tudo isso não bastasse, ainda temos de contabilizar as enxurradas de estrangeiros que por aqui aterram aos “molhos”, vindos um pouco de toda a Europa. Isso e o mercúrio dos termómetros. Que, para se juntar à festa, sobe descontroladamente, tornando ainda mais insuportável todo este índice populacional completamente despropositado e que teima em apoderar-se da nossa capital de ano para ano por esta altura. Ai que saudades daqueles bons velhos tempos! De quando o Verão era sinónimo de sol todos os dias, a chuva fazia a sua aparição a partir de meados do Outono e prolongava-se até fins do Inverno e a Primavera dava os primeiros indicadores de que estava para breve o tempo quente. Hoje já não tenho tanto a certeza de que São Pedro seja a pessoa indicada para estar aos comandos das condições meteorológicas. A idade já lhe deve pesar e não raras são as vezes em que troca os botões e desata a deitar chuva no Verão e calor no Inverno. Mas também que piada é que tinha ter tudo assim, devidamente garantido e padronizado? Não é mais engraçado agora? Sair de casa às nove horas de uma qualquer manhã de Agosto e ser duplamente surpreendido? Primeiro, pelo cinzento das nuvens que cobrem quase por completo um céu que deveria estar azul brilhante e, segundo, porque deparamos com um mar de veículos que não andam para lado nenhum, quando aquela estrada devia estar totalmente desimpedida. Sendo assim, o que é que me resta? Senão permanecer sentado ao volante a tentar controlar os nervos e a imaginar a cara do patrão, pouco convencido de que cheguei outra vez atrasado por culpa de um engarrafamento. Em Agosto? Ele vai lá acreditar.

Um outro campeonato

por migalhas, em 02.08.04
Decorreu durante a passada semana - em Gotemburgo, na Suécia - o segundo campeonato do mundo de futebol dos sem-abrigo, também denominado de futebol de rua. Organizado pela Rede Internacional dos Jornais de Rua - instituição com mais de 50 membros de 32 países, entre os quais Portugal, representado pela revista “Cais” – contou com a participação de 28 selecções, mais 10 do que na primeira edição da prova. Iniciativa louvável, esta reúne as selecções dos sem-abrigo dos diversos países mundiais, proporcionando um torneio à imagem daquele que, de 4 em 4 anos, a UEFA leva a cabo, este com uma ligeira variante. Pois destina-se a atletas profissionais pagos a peso d'ouro e, consequentemente, ao abrigo de todos os luxos e exageros daí resultantes. Diferenças à parte, soube que a selecção nacional - também presente - se estreou com uma derrota por 2-3 frente aos seus congéneres ingleses. É caso para dizer que só mesmo num campeonato de futebol de rua é que os arruaceiros ingleses levam a melhor sobre nós. Mas adiante. Para quem não esteja identificado com esta vertente pobre do futebol de alta competição, é de todo natural que proceda a conjunturas sobre quem é o seleccionador de cada país participante ou como são eleitos os sem-abrigo mais dotados para a prática do velho "soccer". Também eu julgava que havia um olheiro - tal e qual acontece com os clubes de nomeada – cuja função era a de andar por ruas e ruelas observando a técnica de cada um dos pobres desfavorecidos. Que os apanhava nas suas comuns disputas por um lugar melhor ou por aquele banco de jardim tão concorrido e testava aí a técnica com que se esquivam ao adversário ou a velocidade com que dele fogem. Mas não, nada disso. Existe de facto um responsável pela triagem dos mais de 50 sem-abrigo que aderiram a um torneio de pré-selecção e de onde saíram 14 eleitos. Destes apenas 8 viajaram até Gotemburgo, 4 como titulares e os outros 4 como suplentes. E se para lá voaram, devem-no em grande parte ao apoio incondicional da revista “Cais” que, uma vez mais, se revelou decisiva no apoio àqueles que são constantemente ignorados e ostracizados pela nossa sociedade. Outra dúvida que povoava a minha cabeça, era a de saber se a Suécia - país que se tem revelado um digno exemplo de como deve ser uma sociedade civilizada – veria com bons olhos uma invasão das suas ruas e avenidas por alegres atletas habituados a viverem ao relento. Se os suecos - e as belas das suecas altas e louras – iriam à bola com a organização de um evento destas características no seu território. Mas a realidade é outra. Existe de facto alojamento e alimentação para os atletas, tudo devidamente assegurado pela organização do Mundial. Mas se consegui esclarecer estas minhas dúvidas, de todo normais face à novidade do evento e consequente falta de informação disponível, já uma outra permanece sem resposta. Tratando-se de um campeonato para os sem-abrigo, poderá a selecção anfitriã reclamar para si o estatuto de ser a única a "jogar em casa"? Embora não me pareça de todo justo para as demais participantes, a verdade é que lhes assiste esse direito. Digo eu. À hora que escrevo estas palavras, desconheço qual o desempenho dos nossos rapazes. No entanto, acredito que não se tenham contentado com o lugar secundário a que já estão habituados no seu dia-a-dia. Pois lá porque não têm um tecto, não significa que não ambicionem por um lugar ao sol, mas este de que se orgulhem. Em resumo, que tenham seguido o exemplo daqueles que na primeira edição deste torneio – realizado na Austrália - conseguiram o feito de abandonar as ruas e arranjar um emprego que lhes trouxe uma outra dignidade. Por incrível que possa parecer, muitos foram contratados por clubes para alinharem pelas suas equipas e outros para as orientarem como treinadores principais ou como adjuntos. Que esta bola de neve sirva de lição a todos aqueles que vêem no futebol um cancro maligno da nossa sociedade. Ou a todos os outros que nem a janela do carro abrem, quando nos semáforos alguém lhes solicita a sua contribuição, por via da revista “Cais”. Aqui ficam os meus parabéns para todos os envolvidos neste projecto, pois trata-se de uma iniciativa que, no mínimo, dá que pensar. Mais que não seja por revelar a existência de quem ainda dedique algum do seu tempo – e dinheiro, porque não dizê-lo - aos mais desfavorecidos, neste caso aqueles que todas as noites ao relento sonham com uma vida mais digna.